terça-feira, 9 de novembro de 2010

Pensar e sentir

Quando nada se sente, pouca valia há no pensamento, pois do contrário poderíamos dizer que os fins justificam os meios, por exemplo, veria-se um indivíduo se afogando e nada faríamos para socorrê-lo, porquanto o mundo encontra-se superpopuloso, logo o desaparecimento de alguns habitantes seria celebrado ao invés de lastimarmos o ocorrido. Por sua vez se o sentimento se fizesse presente divorciado do pensamento, haveria apenas a inação, o pesar ante a imutabilidade das circunstâncias.

Aldous Huxley afirma que o sentir veio ao mundo antes do pensar, pois como disse o autor: “Em determinadas épocas e locais, certos pensamentos são inconcebíveis”; nossos sentimentos, em contrapartida, sempre fizeram-se presentes em maior ou menor grau. Entretanto, há uma enorme relação entre o que sentimos e pensamos. Exemplificando: a piedade sempre existiu, porém a mesma não era aplicada aos escravos nos tempos de antanho, porquanto os mesmos não eram vistos como nossos iguais, eram caracterizados como inferiores, destarte não mereciam tratamentos similares aos que eram destinados a nossos iguais. Em suma, faltava-nos uma forma mais arguta de raciocínio, porque não éramos capazes de percebê-los como nossos semelhantes, logo nossos sentimentos mais elevados não ousavam deles se acercar.

Em nossos dias contemporâneos, teoricamente já não há mais escravidão, pois nossos bons sentimentos propagaram-se em virtude das conclusões as quais o intelecto nos conduziu, em resumo, podemos dizer que o pensar é a visão do que se sente. Ninguém jamais se apieda de chutar uma dessas pedras que abundam em nossas ruas, pois as mesmas nada representam para nós, portanto não merecem a nossa compaixão. Algo análogo se dá na guerra, quando os povos inimigos são reduzidos da posição de indivíduos para a de objetos danosos, cujo extermínio não merece ser lamuriado, pois somos tomados de sentimentos tenebrosos, cujo resultado é nublar nossa forma de perceber o que nos cinge por meio da razão. Uma das metáforas mais sublimes de Shakespeare pode servir para ilustrar o ponto em questão, eis o que ele afirma: "O ódio é um copo de veneno que tomamos esperando que o outro morra", trocando em miúdos, tornamo-nos seres desarrazoados por consequência de sentimentos mesquinhos.

Darwin comprovou que, na natureza, só os mais fortes sobrevivem; entretanto, como afirmou Richard Dawkins, deve-se reduzir o Darwinismo apenas à biologia, porquanto o mesmo não pode se fazer presente em uma escala social, do contrário faria despontar uma atroz forma de eugenia, cujo fim seria a eliminação dos indivíduos vistos como menos aptos ou úteis. Assim sendo, é evidente a relação entre bons sentimentos e um modo correto de se pensar, pois ambos são incapazes de viver sozinhos, logo se não encontram-se acompanhados um do outro, o caos será o substituto da parte ausente no casal em questão.

O pensador supracitado Aldous Huxley vê as mudanças ocorrentes com um pouco menos de otimismo, pois afirma que a grande maioria dos indivíduos, cujo mérito próprio lhes aparenta residir no repúdio a determinadas práticas de violência bastante comuns no passado, só aboliu tais comportamentos nefastos por conta das mudanças sociais. Em outras palavras, só não perpetram antigas perversidades pois seriam mal vistos se o fizessem, afinal ninguém mais as coloca em prática, ou seja, a causa de tais mudanças comportamentais se dá mais pelo hábito do que por conta das virtudes da maioria da população*. Por fim, é deveras necessário que os indivíduos descerrem os olhos e sintam.


*“Quando a ausência de tentações se prolonga por certo tempo, um hábito ético é criado: os indivíduos chegam a imaginar que o mal em que não incidem é algo monstruoso, em que dificilmente se pode até pensar. Geralmente atribuem a si mesmos o crédito que na realidade é devido às circunstâncias. (...) Existem muitas pessoas que acreditam ser fundamentalmente humanas e na verdade comportam-se como gente humanitária, mas que, se as circunstâncias forem mudadas e ocasiões se apresentarem para serem cruéis (especialmente se a crueldade for representada como um meio para atingir um nobre fim), sucumbiriam à tentação com entusiasmo” Aldous Huxley – pág. 22 – O despertar do mundo novo

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Aparência e realidade


“Vi muitos que filosofavam de maneira muito mais douta que eu, mas sua filosofia lhes era, de certa forma, estranha. (...) Estudavam a natureza humana para poder falar dela com sabedoria, mas não para se conhecerem; trabalhavam para instruir os outros, mas não para se esclarecerem interiormente. Muitos apenas queriam escrever um livro, qualquer um, contanto que este fosse bem-recebido. Quando o livro estivesse pronto e publicado, seu conteúdo não lhes interessava mais em nada, a não ser para fazê-lo ser adotado pelos outros e para defendê-lo em caso de ataque, mas de resto sem nada retirar-lhe para seu próprio uso, sem nem se preocupar se o conteúdo fosse falso ou verdadeiro, conquanto não fosse refutado.
Jean-Jacques Rousseau

Em um romance intitulado "A imortalidade", Milan Kundera propõe um interessante questionamento: se pudéssemos escolher entre dormir com uma formidável e notória beldade, porém sem poder contar nada a ninguém ou apenas passear de braços dados com a mesma por uma movimentada avenida, com a condição de jamais com ela nos deitarmos por qual das hipóteses optaríamos? Para o escritor, a maioria das pessoas escolheria a segunda alternativa, pois a aparência é muito mais importante do que a realidade.

Estaria Kundera equivocado ou realmente somos mesquinhos a tal ponto de sobrepor as aparências ao nosso verdadeiro ser? À mente me vem a obra "O burguês fidalgo" de Molière, na qual um indivíduo deseja ostentar conhecimento e bom gosto acerca de música, dança, filosofia, entre outras artes; porém, as mesmas pouco lhe interessam, logo, entedia-se sobremaneira ao ter lições concernentes a elas. Contudo o ser que ignora certos ensinamentos por não serem de grande valia não é o mesmo que comenta entusiasticamente o objeto de estudo cuja maioria dos tópicos ele menosprezou.

É bastante curioso ver determinadas pessoas que declaram o seu amor pela literatura; as quais, contudo, jamais leem. Tal amor poderia ser definido como contemplativo (pois não somos indecorosos a ponto de chamá-lo de fajuto), entretanto pergunto-me se um amor contemplativo seria visto como possível pelos mesmos indivíduos no que tange ao ente amado. Seria exequível alguém conter dentro de si um amor genuíno por uma mulher próxima de si, tendo plena certeza da reciprocidade do sentimento? Acredito que não, todavia o amor pelas artes encontra-se em outra categoria.

O fato acima pode ser compreendido se notarmos que o real desejo não é o prazer e/ou o conhecimento oriundo de determinadas formas de arte, mas sim o status gerado pela apreciação das mesmas, por conseguinte, não é raro nos depararmos com seres que almejam aprender a tocar certo instrumento musical visando impressionar outrem. Intenção análoga motiva pessoas a ler livros a fim de ostentar conhecimento ou frases marcantes. Porém é deveras improvável um indivíduo se tornar proficiente na música, por exemplo, se sua motivação não é a coisa em si, pois o empenho necessário para o aprimoramento soar-lhe-á deveras desgastante e enfadonho. Entretanto, nada impede que alguém comece a escrever porque sinta necessidade e conquiste a admiração de muitos, todavia o reconhecimento alheio pode ser uma consequência de nossas ações, jamais a causa das mesmas, como disse Sêneca: "Embora em campo lavrado possam aparecer algumas flores, não foi por causa de tais plantas, ainda que proporcionem uma bela visão, que foi gasto tanto trabalho.".

Por fim, movidos pela crença tacanha de que a aparência é mais relevante do que a realidade, mudamos mais amiúde nosso visual do que o modo como pensamos sobre dados assuntos. Importamo-nos mais com a forma como as pessoas nos veem do que como vemos o mundo. Em contrapartida já não foi dito que o essencial é invisível aos olhos?

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Lembranças da infância


Caso houvesse algum modo de nos fazer regredir no tempo, quiçá alguma engenhoca moderna mais eficaz do que a imprecisa memória deste narrador, poderíamos contar com precisão um ocorrido um tanto pitoresco; contudo externemos o que restou do causo em questão antes que o tempo se precipite e resolva surrupiá-lo plenamente das lembranças:

Os tempos eram outros, e a felicidade soprava por todo lugar, pois como não ser um pequeno ditoso quando as companhias existem em abundância e nosso rigor ante as mesmas é tão ínfimo, somos tão pouco dotados de critérios, eis onde mora a alegria; seria possível supor que no porvir nos transformaríamos em peneiras tão rígidas que praticamente nada permitem passar? Obviamente não, porque tínhamos mais no que pensar, como brinquedos, desenhos, amigos reais e imaginários.

O infante em questão poderia ser considerado bastante arteiro, porquanto jamais conseguia manter seus dois joelhos sarados ao mesmo tempo, eis a primeira lei que o desagradou: a da gravidade. Podemos chamá-lo de Mi, pois era como os passarinhos a ele se dirigiam segundo sua mãe lhe contava. Era gostoso sentir-se benquisto até mesmo pelas aves que habitavam seu quintal; hoje, porém, o som das mesmas lhe tira o sono.

Bom, como conter uma criança levada? À mente me vêm duas possibilidades: uma conversa racional ou a criação de um mito qualquer. O pequeno rapaz apreciava sobremaneira caminhar de costas; contudo, sua progenitora se apercebia do risco de uma possível queda, portanto, para dissuadir o menino de seu prazeroso contudo perigoso hábito, inventou que a cada vez que o infante de tal modo procedesse, ele estaria pisando em seu anjo da guarda. É preciso relatar se houve ou não êxito? Obviamente cessaram-se as caminhadas em sentido oposto; doravante o rapaz só andava para a frente, como era correto e justo para consigo mesmo e com o ser celestial que por ele zelava.

Seria apenas o modo de agir das crianças controlado por misticismos análogos? Ou seriam alguns adultos também conduzidos por crendices inventadas com o intuito de colocá-los no caminho certo, no percurso justo a seguir? O pequeno garoto supracitado foi movido, acredito eu, pela piedade, pois sobrepôs o bem estar do anjo ao seu prazer em caminhar no sentido inverso ao habitual, porque os seres divinos não devem apreciar serem pisados, pensava o jovem. Seria essa a única razão que impulsiona os adultos? Ou poderiam eles se deleitar com as possíveis consequências que recairiam sobre seus vizinhos cujo trajeto não viam como correto?

Com o andar da carruagem, a crença de que se deslocar para trás era uma atitude perversa foi se desfazendo, o anjo foi deixando de existir gradativamente; entretanto, desfez-se também o júbilo oriundo da simples forma de contentamento mencionada. Porém, segue-se caminhando em sentido inverso sem o menor prazer ao ver todos os outros ficando mais distantes e menores a cada passo.

Não seria interessante retornar aos tempos de antanho? Ser criança novamente? Porém não seria nada sensato, embora a puerícia seja o momento mais feliz da vida, pois não temos responsabilidades, não somos rancorosos, vemos o mundo como uma grande diversão, entretanto com o amadurecimento não se pode fingir que tudo está perfeito, regido pela mais sublime ordem, porquanto é desarrazoado descobrir que se tomou um placebo a vida inteira e continuar a se medicar de forma espúria. Poderia Sidarta ter visto as mazelas que afligiam o mundo e ter como única resolução o fechamento permanente de todas as janelas de seu castelo, tencionando fingir que nada de ruim existia?