quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Desbancando a perfídia


O destino era o banco, o acaso deu-se lá mesmo. Tudo bem, mas não de forma tão sucinta, pois onde há brevidade em demasia, também há incontáveis incompreensões. Mais uma vez, agora, de mãos dadas com o vagar, deixemos que os pressurosos corram na frente, desatentos às maravilhas do percurso:

O calor despontou com a chegada do verão, a ponto de arrefecer o prazer de uma caminhada pelas ruas; contudo, há sempre exceções. Hoje, o sol acarinhava ao invés de agredir. O rapaz estava em casa, convivendo com tardes imensas, destarte decidiu-se por comprar um livro, a fim de entreter e instruir a si mesmo. Já tinha em mente a obra almejada, bastando apenas ir à única livraria da cidade, ver se o título em questão encontrava-se disponível. Todavia, não dispunha de dinheiro em seu lar, portanto era necessário passar primeiro no banco e, só depois, dirigir-se à livraria.

Nada houve de interessante no trajeto, então, podemos omiti-lo. O banco encontrava-se pouco movimentado, apenas uma dúzia de pessoas por ali. O rapaz logo encontrou uma máquina disponível, sacando, na mesma, a quantia almejada para arcar com suas despesas literárias. Contudo, a despeito de sua barba já um tanto crescida e de seus cabelos desgrenhados, uma senhora lhe pediu ajuda, esta que, devido a seus ínfimos conhecimentos naquele ofício, soou-lhe inexequível, sendo incapaz de atendê-la. Num átimo, sucedeu um novo pedido de auxílio: um senhor, alegando não ter a mais exígua habilidade com aquelas máquinas modernas, indagou-lhe se não veria o saldo bancário para ele. O rapaz anuiu ao pedido, afinal, nada lhe custava. Pegou o cartão do velho homem e o pôs na máquina. Havia uma boa quantia depositada, cerca de dois mil reais. Perguntou ao rapaz se não retiraria para ele mil reais. O rapaz consentiu novamente, retirando o dinheiro e o entregando juntamente com o cartão ao amigável e agradecido senhor. 

Saiu do recinto e dirigiu-se à livraria. Chegando lá, divisou a obra almejada: Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo. Pagou pela mesma e rumou para a sua residência. No caminho de volta, veio-lhe à mente a ideia do tamanho absurdo por parte do homem dentro do banco, este que se constituía em confiar em um estranho, deixá-lo manejar seu cartão, mostrando-lhe sua senha bancária a fim de efetuar com êxito as operações por ele solicitadas. Essa ideia o jovem rapaz recebeu desde cedo - que não devia confiar em estranhos -, porém, hoje, pôde julgá-la um enorme despautério, não a ideia em si, mas o fato de não podermos confiar na honestidade de nossos próprios semelhantes, sermos incapazes de pedir o mínimo auxílio em um ambiente onde a perfídia e a ambição imperam. Reitero: felizmente, existem exceções! O rapaz bradou em pensamento: "não preciso de um céu para ser bom". Pode se julgar um ato de vaidade tal pensamento, talvez apenas de indignação; todavia, creio que pouco lhe importe o julgamento que farão ou se abster-se-ão de fazê-lo.

Pôde extirpar de si um pensamento mesquinho - de que ninguém deve confiar em ninguém, pois todos são trapaceiros-. Entretanto, é notório que preconceitos e superstições oriundas desde o nosso berço têm maior dificuldade em pegar no sono, algumas jamais adormecem, mantêm seus olhos bem abertos a fim de vigorar a todo instante. Felizmente, há exceções.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Adormecer


O quarto era sombrio, assim como o dia lá fora, porém, mesmo que o sol imperasse perenemente, o quarto manteria seu caráter lúgubre. Havia algumas poucas pessoas sentadas ao redor de uma cama um tanto simples, na qual jazia um senhor bastante enfermo. A fala estava muito bem aprisionada nas poucas bocas ali presentes, pois assim o doente desejara, após julgar condenáveis os absurdos há pouco proferidos. Quiseram os circunstantes despreocupá-lo acerca dos receios iminentes em tal ponto da vida no qual se encontrava. Para tal fim, falaram por certos instantes acerca de suas crenças na vida após a morte, ressurreição, eternidade da alma, entre outros assuntos reconfortantes. O velho mandou que se calassem, pois não precisava de conforto, sobretudo oriundo de formas espúrias de alívio. Chamou a todos de tolos, por acreditarem em tamanhas baboseiras, indagando-os se possuíam evidencias para professar tamanhas falsidades. Teve um excesso de tosse após esse breve momento de agitação. Logo que se restabeleceu, continuou falando, agora em tom mais brando. Comparou as crenças dos indivíduos ali situados e o modo como se portavam com base nas mesmas a colegiais indolentes que julgam poder protelar seus afazeres perenemente. Contudo, de maneira mais plácida, afiançou que, diferentemente de uma escola, a vida não permite novas oportunidades, não é uma questão de ser reprovado e poder obter êxito no ano subsequente, há apenas uma vida e o único pecado é não vivê-la de forma satisfatória. Como disse, o existir por si só não tem o mínimo sentido, portanto é necessário que lhe atribuamos um.

O pessimismo em suas palavras foi decretado unanimemente por todos no quarto. O enfermo pensou, abstendo-se de participar tal ideia aos demais: "é notória a falibilidade dos sentidos, porém como um mesmo argumento bem elucidado pode parecer otimista para alguns e derrotista a outros?". Prosseguiu: "A estética deveras atrapalha o julgamento humano dos fatos, pois é muito mais belo crer em novas e incessantes oportunidades do que responsabilizar o homem por seus próprios atos".

Foi decretado horário de visita, e aos sons inteligíveis foi permitido sair de seus cárceres. As pessoas começaram a falar entre si sobre fatos concernentes ao cotidiano. O velho ouvia à medida do possível, porquanto sua audição estava bem aquém do que já fora. Aquelas conversas simples o interessavam significativamente, muito além de metafísicas vãs. Sentiu uma imensa saudade dos tempos áureos de antanho, nos quais sua saúde o possibilitava de ir ter momentos aprazíveis com seus confrades de colóquio, maneira como se referia a seus amigos, em belas manhãs ensolaradas. Adorava também conversar com crianças, porque estas sempre o surpreendiam com suas perguntas inesperadas.

Deste modo, fica difícil julgar a mesma pessoa se equipararmos o velho ranzinza na cama deitado, com o amigável senhor de outrora. Entretanto, podemos atribuir o mau humor à sua saúde estável, às visitas que lhe soam enfadonhas, à saudade de suas leituras ou caminhadas matutinas, ou então simplesmente estava sendo castigado por seus pensamentos subversivos. Quem poderá saber.

A noite foi se acercando pouco a pouco, porém nada mudava com a sua chegada, visto a imensa escuridão na qual se encontrava o quarto. Contudo, houve algo significativo, seus visitantes começaram  a ir embora, devido à hora avançada. Eram seus familiares a deixar o quarto, nunca houve uma genuína amizade entre eles, pois os julgava deveras entediantes e perversos, embora o conceito que tivessem de si próprios fosse outro. Por fim, a paz estava justamente esperando que saíssem para fazer companhia ao pobre senhor, ao menos essa era a forma de pensar do homem.

Ansiou para adormecer logo e para que seu sono fosse povoado por sonhos agradáveis, pois este era, ultimamente, o momento mais feliz de sua vida; porém, não se sentia nem um pouco injustiçado. 

domingo, 20 de dezembro de 2009

Fato desfiado


Era uma noite comum e cálida, o relógio movia-se celeremente, pois a diversão estava presente. Porém, a serenata dos pássaros estava prestes a principiar, sendo incômodo adormecer ao som de tal concerto, ao menos para quem esta história está a narrar. Tudo se encaminhava para um desfecho corriqueiro, até a visão de uma aranha em plena parede do quarto. Recebeu um olhar de espanto, devido a seu tamanho e a sua localização. Possivelmente o aracnídeo não teria a mesma sorte de seus congêneres que habitam outros cômodos da mesma residência, tanto que convivo em harmonia com espécies que residem em um curto corredor, o qual liga o quarto à cozinha. Contudo, estávamos perante uma exceção, eu e o artrópode em questão; entretanto, o que seria da vida se apenas houvesse regras e nenhuma exceção? Bom, neste caso, a vida da aranha ainda existiria.

Após estraçalhar o animal com duas bordoadas precisas, contudo desnecessárias, fiquei um tanto pensativo acerca do fundamento da ação há pouco perpetrada. Confesso que foi difícil encontrar um argumento suficientemente bom para a rigorosidade da razão. Assim sendo, pensei em fazer como todos, ou seja: selecionar um argumento espúrio, de preferência conveniente, e torná-lo verdadeiro. Todavia, não foi o que fiz, pois, ironicamente, naquela mesma noite, eu lera o conto "O enforcamento", de George Orwell, no qual um preso era conduzido ao cadafalso, o guarda que o encaminhava ao suplício, em dado momento, pôs-se a refletir se aquele prisioneiro não era igual a ele, se merecia aquele final atroz. No fim, o prisioneiro padeceu, engolido pela mordida impiedosa da forca. O guarda ficou pensativo por alguns instantes, porém, logo, imergiu nas gargalhadas de seus superiores, e em poucos instantes olvidou a contestabilidade de seu ofício.

Será que o mesmo não se daria com a minha pessoa? Não me esqueceria do que havia feito, ou pelo menos do significado do ato, e me entregaria a um sono plácido e aprazível, acordando, no dia seguinte, sem mais me lembrar do que houvera? Destarte, pairou um dilema sobre mim, já que não almejava o esquecimento, deveria deixar o ocorrido como uma marca indelével dentro de mim? Seria a antítese do que ocorria com os escravos fugitivos das minas de carvão, porquanto, como punição, estes recebiam uma argola no pescoço, a fim de jamais esquecerem o que fizeram. Nos tempos de antanho recém citados, a marca inapagável era exclusividade dos fugitivos, no meu caso, a mesma se daria se optasse pelo oposto, se permanecesse ao invés de correr de mim mesmo.

Inúmeras vezes, a consciência se assemelha a uma imensa teia, capaz de nos prender como um ínfimo inseto, cujo debater-se é inútil, pois jamais poderá se libertar, restando-lhe apenas aguardar o momento de ser devorado, visto que a posição de presa jamais será deposta. A resistência dos fios é de assombrar, embora se seja mais do que um inseto, deste modo conseguindo se libertar, haverá sempre alguns resquícios do antigo cárcere a nos acompanhar.

Tive três possibilidades de escolha: fugir, ficar ou aprender. Assim sendo, pensei: "de que serviria um martírio eterno; seria mais uma questão de vaidade". Conseguintemente, o mais sensato seria evitar repetir a atitude que tanto desagradou-me. O sono por fim bateu à porta, a casa estava suficientemente organizada para recebê-lo, porque acabara de ser limpa, embora ainda houvesse pequenos indícios de sujeira, como diminutas patinhas e um tanto de sangue em uma das paredes.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Contexto contestado


“O extraordinário é aqueles que cansam sua razão para fazer com que relacione certos acontecimentos com forças ocultas não fazem o mínimo esforço para evitar de verificar a verdadeira causa”Montesquieu

Após anos de desenvolvimento do pensar, constitui-se um desatino o ato de julgar determinada atitude desconsiderando o contexto no qual está inserida. Porém, em diversas circunstâncias, embora o cenário e as motivações sejam supostamente levados em conta, o equívoco teima em se fazer presente, quiça de forma análoga ao vício que expulsamos fervorosamente quando nossos vizinhos estão observando; o qual, porém, chamamos de volta assim que os olhos alheios perdem-nos de vista.

Um exemplo assaz relevante, cuja exposição decerto servirá para elucidar o ponto de vista deste escrito é a morte de um ou mais indivíduos indefesos causada por outrem. O assassinato é visto como atroz nos mais distintos lugares, sendo seu perpetrador punido com diferentes castigos. Em contrapartida, louros recaem sobre quem mata seus inimigos na guerra, eis uma mudança de contexto e de ponto de vista acerca da ação cometida. 

Ademais, meninas que saem à noite dotadas de um indumentária dita como indecorosa por muitos são vítimas dos mais infundados impropérios por parte de observadores; o mesmo, contudo, não ocorre com quem estiver usando um biquíni comum em uma praia. Destarte, surge sem vagar uma questão à mente: não estariam as mulheres na praia mostrando mais partes de seus corpos do que suas congêneres frequentadoras de festas? Não seriam ambos locais voltados ao lazer e à diversão? Assim sendo, o que permite certas vestimentas e um e em outro, não?

Quando a escolha feita por alguém não é passível de afetar outrem de forma danosa, qual o sentido deste intervir nas ações daquele? Soa realmente difícil para a razão responder a tal questionamento. Se tais intervenções benéficas fossem postas em prática o tempo inteiro, muitas televisões seriam desligadas enquanto seus pobres telespectadores lançavam-lhes olhares estúpidos de forma similar às baboseiras que recebem em troca, sendo este apenas um dos exemplos não efetuados amiúde. 

Concluindo, é inegável o valor do contexto na avaliação dos fatos, entretanto este vem sendo mal interpretado em incontáveis situações. Tudo isso se dá pois as pessoas têm predileção por voltar-se ao mesquinho, como na obra 1984, de George Orwell, na qual os proles utilizavam suas memórias para decorar dados concernentes aos números da lotéria, porém esqueciam seu passado completamente, porque não o julgavam tão relevante quanto a possível sorte grande. 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Destino desfeito


Seu fado o enfada;

Sua farda mofada

Representa outrem

Pois soa-lhe aquém

De seus princípios

Que dias insípidos

Buscam evitar

Para sua alma salvar


Não crendo em destino

Julgando-o um desatino

Alcança-se a liberdade

A visão com profundidade

Cansa-se da resignação

E há início a reação

Dissolvendo-se pretextos

Imergindo em belos textos


A pena pode tudo escrever

Igualmente se dá  com o viver

Menos limitações na poesia;

Mais liberdade, todavia

Versos e homens livres

Abertura a distintos alvitres

Porém o sonho se pinta

Antes que finde-se a tinta


quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Tesouro espúrio


Muitos baús podem se encontar destituídos de tesouros

Embora belamente adornados, por dentro estão vazios

Nem sequer terão cruzado o mundo em encantadores navios;

Havendo neles apenas o que são por si sós joias e ouros


Porém, em tempos deveras áridos para o intelecto

Navegar em um fabuloso, mas conturbado mar

Representa do porto intitulado felicidade se distanciar;

Teima-se em transformar um espírito jovial em provecto

Quando pelo veneno da resignação nos tornamos infectos


No final das contas, percrustar oceanos é realmente tentador

Embora a água límpida e espumante seja vista com temor

Por quem não sabe nadar e tal arte não se dispõe a praticar


Somente os peixes sem ínfimos esforços nascem e saem nadando

Quanto a nós, desde os tempos de antanho, foi preciso empenho

Pois se inexiste, indubitavelmente haverá pretextos ao desdenho

Porquanto onde a indolência governa, a si mesmo se está enterrando


Seria mais sensato realmente, destinar às profundezas da terra

Baús por belas pedras incrustados, contudo da ignorância aliados

Ao invés de arcas de aspecto não tão sublime à falibilidade da visão

Porém, cujos tesouros recônditos satisfazem a um plácido coração


domingo, 22 de novembro de 2009

Existência simbólica


É imensurável a quantidade de elementos meramente simbólicos ao nosso redor; porém, damos-lhes desmesurado valor. Um exemplo básico e deveras relevante é o dinheiro, a cuja obtenção uma miríade de vidas é sacrificada, pode-se adaptar a fala de Monstesquieu aos tempos contemporâneos: "Não há nada de tão extravagante como fazer perecer um número incontável de homens para tirar do fundo da terra ouro e prata; esses metais, em si mesmos totalmente inúteis, e que só são riquezas porque foram escolhidos para serem símbolos". Há um interessante apólogo de Esopo, no qual uma galinha encontra um preciosíssimo diamante; o qual, entretanto, de nada lhe serve, destarte a ave profere que preferia um punhado de alimento a tal "preciosidade".

Dando continuidade, há um exemplo mais patente do que a autoridade? Esta que pode ser representada por uma farda, por um título, etc. Entretanto, como disse um formidável autor, cujo nome infelizmente olvidei, um policial pode agredir a própria esposa e mesmo assim prender os outros indivíduos quando achar seus atos em desacordo com o permitido, da mesma forma, um médico pode ser viciado em cocaína e receitar medicamentos a uma infinidade de pacientes. Acabamos julgando exímios tais seres unicamente por suas marcas de autoridade, marcas simbólicas. Todavia, de nada servem realmente tais indícios, porque como afirmou Erasmo de Rotterdam: “Não falta quem faça pintar leões, águias, touros e leopardos em seus brasões, mas só possui a verdadeira nobreza quem pode esculpir suas insígnias com tantos emblemas quantas as artes liberais que cultivou".

No final das contas, acabamos nos acostumando a supervalorizar o que em si mesmo não significa nada, não passando de inutilidades ou de inocuidades, como promessas e juramentos*, que em inúmeras ocasiões são desfeitos, em contrapartida são mantidos até o fim em outras situações, gerando imensos desgostos a seus fiéis executores; também podem ser inofensivos, decerto. Um caso cotidiano é ir ao cemitério no dia de finados, pôr flores defronte a onde jazem os restos de nossos entes queridos, não sou contrário ao ato de rememorar pessoas amadas, que não mais estão vivas, entretanto seria mais eficaz olhar algumas fotografias nossas e de nossos familiares juntos com quem já se foi e de quem estaríamos recordando, ademais é tão agradável ouvir causos inusitados acerca de tais pessoas que tanto estimamos, histórias que desconhecíamos ou das quais nem sequer nos lembrávamos. Do contrário, preferem-se fazer algumas orações ante o sepulcro, estas que para mim nada significam.

Há pouco tempo, participaram-me que em um velório de um pai de família, os filhos e a esposa do mesmo nem sequer beijaram o falecido antes de o caixão ser fechado. Tal fato me foi noticiado como sendo horrendo, uma extrema falta de respeito ante quem se foi. Porém, o que representaria um ósculo a quem nem mesmo poderia senti-lo? Não seria muito mais satisfatório se lhe destinassem pensamentos carinhosos, se nutrissem de genuíno afeto lembranças concernetes a ele e com carinho mantidas? Eis um derradeiro exemplo de atitudes simbólicas, este retratado na obra Dicionário filosófico de Voltaire: o batismo representa a purificação, assim sendo, outrora, podiam-se cometer as maiores atrocidades, bastando a cerimônia de batismo para livrar o homem de seus pecados.

Podemos nos deparar com casos inócuos, danosos e, até mesmo agradáveis*de objetos ou ações com valor simbólico, mas há um grande equívoco em não se aperceber de tais características não reais, pois alguns casos podem ser extremamente maléficos, usados visando prejudicar os demais a fim de elevar seus utilizadores; tais elevações que, todavia, são na grande maioria das vezes unicamente simbólicas.

*Se, na obra Esaú e Jacó, de Machado de assis, os dois irmãos tivessem cumprido a promessa feita ante o jazigo de Flora ou o juramento feito a sua mãe, em seu leito de morte, teriam sido extremamente infelizes.

*Um caso útil é a forma como as vacas, não somente elas, são vistas pelos hindus, assim sendo, tais animais são incrivelmente bem tratados. Em contrapartida, há as castas na Índia, que julgo infundadas e execráveis.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Soneto saudoso


O café esfriou de tanto nos esperar

A xícara, outrora cheia, a se esvaziar

Gota a gota caindo sorrateiramente

Como as lembranças a deixar a mente

-

Porém, as memórias cativantes se prendem

Se perdem, mas logo tornam ao lar; se rendem

Contudo, receio que um dia não mais retornarão

Perder-se-ão em meio a outras atuais e sumirão

-

Suas crendices serviram para nos afastar

Mentiras aconchegantes para sua vida adoçar 

Mantendo-a distante, receosa de pecar

-

Espero que seu equívoco seja percebido

Libertando um puro coração oprimido

Unindo-o a um saudoso e velho amigo

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O conto da ave aventureira




Era um inverno feroz, e muitos animais haviam se mandado da gélida floresta para áreas mais aquecidas, onde o sol fosse capaz de forni-los de seu aprazível calor. Uma bela ave recusou-se a fazer tal viagem com as demais, visto que sua bela e longa cauda a impossibilitava de voar. Outros pássaros se ofereceram parar cortar sua cauda, assim poderia locomover-se livremente pelos céus nebulosos, que tornar-se-iam claros gradativamente, conforme o bater de asas. Porém, a formosa ave declinou o convite, dizendo-lhes que os veria no ano vindouro. Seus companheiros se foram, levando consigo belas canções e companhias agradabilíssimas.

Os dias foram passando com muito vagar, imperava o silêncio e a bela ave nada fazia, afora observar extasiada seu belíssimo adorno corporal. As plumas balançavam lentamente com a brisa, parecendo abranger todas as mais formidáveis cores. Ora brilhavam em tons mistos de roxo e azul, em outros momentos, era o vermelho e o verde a prevalecer. O cuidado com tais penas era tremendo, não as deixava entrar em contato com a água da chuva, porque esta almejava arruiná-las devido a sua inveja, julgava que o próprio céu não admitia tamanha formosura e tencionava desfazê-la, também esquivava-se do vento, porquanto este poderia, sorrateiramente, furtar-lhe uma de suas preciosas penas, pois era notória sua famosa arte de caçador de tesouros preciosos; contudo, o distinto adereço a ninguém pertencia, exceto a si mesma.

Entretanto, com o decorrer do tempo, a ave foi se enfastiando de apenas ostentar sua graciosidade à chuva e ao vento, esses que recebiam desmedida importância por parte dela, justamente por seus intentos perversos, porém pouco plausíveis, até mesmo para sua idealizadora. Não ousava adentrar a parte central da floresta, porque era lá que habitavam os animais mais famintos. Assim sendo, expulsou tais pensamentos de sua cabeça; não iria ao meio da floresta, estava decidido. Procurou algo a fim de se entreter e instantes depois, estava a acariciar suas penas. Achava-as tão macias e sedosas, embora não estivessem em contato com o sol. Porém, pensava, pelo astro rei nem sequer era benquista, muito pelo contrário, o mesmo, em sua inferioridade de beleza, emitia raios quentíssimos diretamente em sua direção, ambicionando incinerar suas plumas que o pospunham longamente à ave em matéria de encanto. Não era para menos que o local onde mais sentisse calor fosse nas penas, este muitas vezes difícil de aguentar; contudo, ela era perseverante.

Entretanto, perto da lua, o sol era até bondoso, pois essa já que não podia competir com a ave em exuberância, porque o esplendor da mesma eclipsava a rainha da noite, decidiu deixar toda a floresta imersa na escuridão durante um longo período, diariamente e sem tréguas. Sendo dotada de um imenso egoísmo, seu lema era: "se eu não for admirada, ninguém o será".

Sua graça passou a irritá-la, porque pensava: "de que adianta ter uma infinidade de belas plumas e nem sequer um ínfimo grupo de observadores dispostos a elogiá-las?". Comparava-se ao mais sublime dos poemas, nunca lido por ninguém, exceto por seu autor. Sentia-se imensamente triste, almejava fazer consigo mesma exatamente o que faria com a folha na qual estava escrito o poema há pouco pensado. Rasgá-lo-ia em centenas de pedaços e os jogaria no vento com raiva, como que zombando do onipresente gatuno, pois, naquele momento, de nada lhe serviriam os enfeites da ave.

Por fim, não mais suportando o infindável tédio, resolveu dirigir-se ao cerne da floresta. Aprumou as plumas e repleta de expectativa, caminhou lentamente. Após alguns passos, já pôde ouvir o barulho dos outros animais. Escondeu-se atrás de uma árvore e principiou a perscrutar o que havia mais adiante. Deparou-se com um belo leão, deitado na grama, cuja expressão denotava enfado. Resolveu que obteria um elogio do rei da floresta e, parando diante de seus olhos, debaixo de um ponto propício iluminado pelo sol, ergueu entusiasticamente o mar de penas, que luziu maravilhosamente. Quando seus olhos buscaram o selvagem felino, nada divisaram, então voltou-se para o outro lado, avistando, de súbito, o enorme animal, este que detinha um olhar horrendo e exibia dentes imensos e incrivelmente afiados, que, em poucos instantes, abocanharam a bela ave. Destroçaram-lhe furiosamente o frágil corpo, não deixando praticamente nenhum remanescente, excetuando algumas poucas penas banhadas em uma poça de sangue quente. Estas que o vento não tardou em espalhar para longe.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

(In)Sensata separação


O sol vespertino sorria no horizonte, colorindo o céu, as árvores e o rosto das pessoas que passeavam pelas ruas cálidas da estação das flores. Contudo, um casal discutia, pois a garota iria fazer uma viagem para a Alemanha, esta que duraria 7 meses e lhe seria de extrema relevância. O rapaz não se opunha à viagem; todavia, não cria na possibilidade do romance perdurar, porquanto cada um viveria em um continente distinto. A jovem objetava que eles não se envolveriam com ninguém, continuariam o namoro mesmo longes, porque logo ela estaria de volta.

Ele lhe disse que seria impossível fazer um juramento de não se envolverem com outrem, pois não podiam controlar o acaso. A menina retorquiu que se ele a amava, seria simples de cumprir tal promessa. Todavia, obteve como resposta palavras tristes que afirmavam ser simples amar alguém quando há proximidade, contudo a distância muda tudo, porque viviam um romance movido pelos sentimentos, não pela razão, dessa forma, como poderiam prever suas ações futuras? Afiançar a eternidade de um sentimento? A garota não conseguiu dissimular sua desolação ao ouvir tais sentenças. Verteu pequenas lágrimas que marcaram seu formoso rosto. Deixando o rapaz muito embaraçado, pensando freneticamente; entretanto, sendo incapaz de emitir qualquer comentário reconfortante.

Por fim, proferiu desengonçadamente palavras que unicamente serviram para recrudescer a consternação da menina. Afirmou-lhe que há um grande equívoco entre os indivíduos, porquanto desejam adaptar os sentimentos a eles próprios, não o contrário. Equiparou tal conclusão a um ente que está insatisfeito com a linguagem do livro que tem em mãos, visto que não a compreende plenamente, porém a obra não pode ser modificada, pois já está impressa, já foi finalizada, assim sendo, cabe apenas ao leitor se adaptar, pegar um dicionário e aprender os vocábulos que desconhece. O mesmo até poderia buscar outras edições do escrito, onde encontraria mais facilidade em certos trechos, contudo se complicaria em outros, pois a essência é a mesma.

A menina lhe disse, já com os tristes olhinhos azuis marejados, que, como ele mesmo dissera, sendo o amor algo não racional, não deveria receber esse tipo de análise. Afirmou que já haviam brigado algumas vezes, e haviam se acertado novamente há pouco tempo e agora quando estavam felizes, ele solaparia tudo. O jovem implorou-lhe que não chorasse; odiava vê-la de tal forma. Contudo, afiançou que já haviam terminado e tentado novamente inúmeras vezes. Comparou-os a um lápis, o qual tem a ponta quebrada, logo o apontam a fim de recobrar-lhe a funcionalidade; contudo, cada vez que o consertam, ele vai diminuindo de estatura, chegando a um momento em que não sobrará nada.

A jovem compreendeu tal metáfora e, imersa na dor, saiu desconsolada, sentido uma tristeza para ela inexistente, jamais imaginou que um sentimendo alcançasse tamanha intensidade. Pediu que o rapaz a deixasse em paz quando esse tentou se redimir. Declinou seus pedidos de perdão e disse-lhe para jamais procurá-la novamente. O jovem quedou paralisado, principiou a andar sem rumo, errando de rua em rua. Nos poucos momentos em que erguia o rosto, divisava prédios horrendos, pessoas sem graça, uma natureza mórbida que parecia deleitar-se com seu infortúnio. O leve movimento das árvores parecia zombar dele. Baixou novamente a cabeça e seguiu caminhando. 

domingo, 18 de outubro de 2009

Diálogo noturno



Em uma taverna dotada de pouca luz, dois amigos discutiam calorosamente.

Aristides: Deparei-me com o seguinte trecho em uma canção: "se no jogo não há juiz, não há jogada fora da lei", o que você, não crendo em Deus, diz-me acerca do fragmento em questão?

Friedrich C.: Primeiramente, meu amigo, você não acha os indivíduos que agem de forma bondosa para com o próximo, meramente visando alcançar o paraíso, os seres mais execráveis da face da terra? Porquanto se não acreditassem na divindade, sairiam saqueando seus companheiros, a fim de acumular riquezas, matariam sem receio os que pensam e agem de forma contrária à deles.

Aristides: Creio que agimos todos movidos por algum interesse. No exemplo que você utilizou, os crentes em Deus agem procurando alcançar o céu. Portanto, se estamos famintos, podemos subir em determinada árvore a fim de apanhar alguns frutos para saciar nosso apetite; todavia, se não houver fome, qual o sentido em despender a energia de tal escalada em vão?

Friedrich C.: Você se utiliza da razão em sua análise; entretanto, em certos casos, a racionalidade é ineficaz se não for acrescida aos sentimentos, logo, pergunto-lhe se seria sensato não salvar o próprio pai de um afogamento, visto que com sua morte receberíamos a herança mais cedo? Segundo uma forma de pensar destituída de sentimentos, o perecimento do progenitor seria deveras vantajoso; em contrapartida, a mesma atitude seria vista como atroz e inadmissível, se puséssemos o amor sentido por tal indivíduo na questão. Posso lhe afirmar que faríamos o mesmo por um desconhecido, pois gostaríamos que o mesmo fosse feito por nós, se nos encontrássemos em tal situação adversa.

Aristides: Concordo com o que você proferiu, caro companheiro; porém, dar-lhe-ia outro nome; eu o chamaria de livre-arbítrio, porque nos foi dada a possibilidade de escolher entre agir mal e arcar com as devidas consequências ou fazer o bem e nos darmos o direito de usufruir dos benefícios oriundos de tais ações.

Friedrich C.: Deste modo, prezado confrade, você jamais viu a injustiça passar impunemente? O mau ser mais ditoso do que o bom?

Aristides: Isso pode até ocorrer na vida terrena, mas não há maldade que saia incólume do julgamento divino.

Friedrich C.: Meu bom amigo, você deve privar-se da ilusão de que vivemos em um mundo plenamente justo, pois muitas vezes o egoísmo prepondera sobre a bondade. Entretanto, deve-se mostrar o caminho certo, mediante a educação, e não por intermédio do temor e de mitos descabidos.  Ademais, se temos um criador, não seria ele responsável por todas as perversidades que perpetramos?

Aristides: Pelos céus! De onde provém tamanho disparate? Deus nos dá a liberdade de escolha, para que façamos o que julgarmos correto.

Friedrich C.: Elucide-me, portanto, o fato a seguir. Se deus é onisciente - sabendo a que tipo de ações estamos sujeitos -, apercebe-se de quando põe um ser nefasto no mundo, o qual todos devem temer, caso estimem suas vidas e a de seus familiares. Outrossim, sendo onipotente, por que razão não cria apenas indivíduos providos de bondade e amor por seus semelhantes?

Aristides: Nosso criador sabe acerca de tudo que aconteceu e está acontecendo, porém não pode ver o que ainda é incerto, ou seja, o que ainda não foi feito. No atinente a sua onipotência, Ele cria apenas entes bondosos; contudo, a sociedade, desprovida de fé, trata de os corromper.

Friedrich C.: Você alguma vez se indagou se deus é realmente tão benevolente, caso realmente exista, se não estaria apenas divisando nossa desafortunada situação com um olhar risonho? Ademais, não pode ter desaparecido há muito tempo, ou apenas nós somos dotados de um curto período de existência...

Assim, noite adentro, permanece o colóquio dos dois companheiros, munidos de pensamentos tão distintos; porém, que deveras se estimam mutuamente. Pois como disse Bertrand Russell: "Encontres mais prazer em desacordo inteligente do que em concordância passiva, pois, se valorizas a inteligência como deverias, o primeiro será um acordo mais profundo que a segunda."

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Elogios que não elevam


Estava, esses dias, conversando com um amigo acerca dos elogios, do quão benéficos e do quão prejudiciais podem ser. Primeiramente, pode-se objetivar que nada é mau por si só, visto que depende da relação que terá com a pessoa com a qual entrar em contato, eis uma afirmação correta, entretanto é difícil se esquivar dos danos provocados, sobretudo quando não somos muito maduros, de maneira semelhante, pode se perguntar se é possível ficar um longo período exposto a um sol escaldante sem que ocorra algum problema, embora ínfimo?

Conclui-se que, embora o calor proporcionado pelo astro rei seja aprazível, o mesmo pode acarretar efeitos nefastos. Com relação aos elogios, sucede algo bastante análogo, porque é deveras agradável a sensação de se ouvir um comentário positivo acerca de algo que realizamos a contento; contudo, pode-se obter uma espúria convicção de que estamos demasiado proficientes naquele empreendimento, destarte, não mais nos empenharemos em aprimorá-lo. Pode-se adaptar o exemplo de Sêneca para o contexto em questão: “Penso que muitos poderiam ter chegado à sabedoria se não pensassem já serem sábios, se não tivessem dissimulado para si mesmos algumas coisas e se não tivessem passado por outras tantas com os olhos fechados. Não há razão para pensares que a adulação alheia nos é mais perigosa que a nossa própria”.

Porém, há uma forma ainda pior de estrago gerada por elogios desmesurados, porquanto a primeira pode frear o empenho voltado a certa atividade; esta, por sua vez, finda algo de produtivo antes mesmo que àquilo se inicie a dedicação. Pode ser notada naqueles indivíduos que desde pequenos são venerados, porque detêm uma incrível beleza física, assim sendo, obtêm tudo com menos esforço do que o habitual, tornando-se pessoas pouco hábeis no que é realmente útil. 

Felizmente, há exceções, pois nem todos se deixam influenciar negativamente pela admiração alheia. Porém, em geral, é triste que algo tão agradável como ser elogiado produza efeitos tão improdutivos. Em suma, equipara-se a enfeitar uma ave com um belo e pesado ornamento, este que a dotará de imenso esplendor; todavia, a privará de voar.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Desespero inspira-dor


Passos vagarosos, espera desesperada

Sem sair do lugar, almejando a sua chegada

Com um livro imenso, procura distração

Mas é insuficiente para livrá-lo da apreensão

-

Recluso em pensamentos, tormentos atrozes

Concernentes a você suas consternações velozes

Condenações injustas, a solidão jamais é justa

Pois quando não é desejada, deveras assusta

-

Abate uma alma que se debate ante o tempo

Que embora passe, deixa intacto o lamento

Diferente do olhar, que segue exausto e atento

-

Atento a uma maravilhosa aparição inesperada

Uma presença que o cumula de luz, lhe agrada

Porém a esperança pouco a pouco o vitima

De uma incessante e insuportável rotina

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Poema pueril



Pequenos em estatura, mas de imensa imaginação

Maravilhados com contos de fadas, alheios à desilusão

Detêm almas cândidas, desconhecem preconceitos

Somente à amizade e ao perdão encontram-se afeitos

-

Entretanto, ao invés de com eles aprendermos

Nossos vícios aos pequenos logo transmitiremos

Assim, perde-se de manter uma alma pueril

Pois com desmedida pressa a tornamos senil

-

Morre-se de saudade do que se era na infância

Seres infames, que almejam o passado com ânsia

Não mais afeitos ao afeto, já com o espírito decrépito

-

Um cristal jamais será o mesmo após se quebrar

Assim, a pureza pueril como poeira a se dispersar

Perder-se-á para sempre, deixando vozes a lamentar

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Vislumbres de Vaidade


“Porventura crês e, aqui, como velho jogo flores sobre mim mesmo, teria passado meus dias e noites atarefado, em tempo de guerra e em época de paz, se com a minha morte também morressem minha fama e glória?
Não teria sido preferível ter vivido na tranqüilidade, sem empenhos e labutas?" Cícero

Um veículo não se move sem um combustível, o mesmo ocorre com a espécie humana, que nada faz se inexiste um impulso, este que é oriundo de um sentimento ou sensação, e de um desejo, cuja função é satisfazer, anular ou manter o que nos instigou a agir. Pode-se constatar a presença da vaidade entre os principais fatores que nos movimentam.  
Primeiramente, é possível notar uma desmedida dose de vaidade na frase de Cícero, a qual principia este escrito, porquanto o filósofo age pensando na posteridade. O mesmo pode-se notar por parte de certos católicos, na obra O elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam, que se gabam de pouca relevância dar às coisas mundanas, visto que uns se vangloriam de nunca terem lavado o hábito que vestem, outros, de jamais terem tocado em dinheiro, alguns, de realizarem jejuns por longos períodos, entre outros exemplos, contra os quais o autor afirma que Deus apenas almejava que eles exercessem a caridade.
Como se viu, a vaidade é intrínseca ao homem; contudo, pode ser benéfica ou não. Certos indivíduos gabam-se de possuir uma compleição escultural, realizando diversos esforços na obtenção da mesma; entretanto, como disse Erasmo: “Em suma, se a aparência fizesse homens, as estátuas seriam parte do gênero humano”.
Sêneca afirma haver vaidade até mesmo no atinente à morte de outrem, pois fingimos estar muito mais tristes do que realmente estamos na presença de outras pessoas, mesmo quando a dor já passou, dissimulamos a sua permanência. Há outro exemplo interessante na obra O cavaleiro inexistente, de Italo Calvino, na qual há uma armadura alva impecável, todavia não há nenhum cavaleiro dentro da mesma, embora ela se mova e seja capaz de falar. Tal ser é impecável em tudo que faz, e desmente seus companheiros quando contam histórias espúrias ou imprecisas acerca de seus feitos no exército, outrossim, os repreende quando não se empenham com o devido afinco em suas tarefas, em suma, fere a vaidade de seus confrades, e é justamente por isso que é um cavaleiro inexistente, porque ninguém almeja alguém assim por perto, porquanto preferem manter a boa impressão que possuem de si próprios. Como disse Albert Camus: “Sobretudo, não acredite nos seus amigos, quando lhe pedirem que seja sincero com eles. Só anseiam que alguém os mantenha no bom conceito que fazem de si próprios, ao lhes fornecer uma certeza suplementar, que extrairão de sua promessa de sinceridade. Como poderia a sinceridade ser uma condição da amizade? O gosto pela verdade a qualquer preço é uma paixão que nada poupa e a que nada resiste. É um vício, às vezes um conforto, ou um egoísmo. Portanto, se o senhor se encontrar nesse caso, não hesite: prometa ser verdadeiro e minta o melhor que puder."
Concluindo, é notório haver pontos positivos e negativos no que concerne à vaidade, embora os infundados denotem preponderar, desta forma suscitando um número cada vez maior de armaduras (lembranças) dotadas de imensa retidão; todavia, desprovidas de cavaleiros.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Surreal



Seus dizeres indecorosos sei de cor

Recorro a reminiscências com ardor

Porém, preferiria não as encontrar;

O desconhecido não se precisa olvidar

-

Deparo-me com diversas estátuas

Nelas reparo e, a despeito da beleza,

Não se movem, preciosidades fátuas

Comparadas a um precisar impreciso

Porém prolixo, ao invés de conciso

-

Pensamentos complexos ao entendimento

Sentimentos desconexos ao pensamento

Verdades intermitentes, saudade contínua

De algo mais imaginado do que vivenciado

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Questionando convenções


Estou convicto de que nossa vida gira em torno de convenções, o engraçado é que elas podem ser vistas como estranhas ou incômodas em certos casos e como inócuas em outros, quase imperceptíveis para a grande maioria. Decerto, isso ocorre devido à comodidade gerada pelas mesmas, isso quando são aceitas; todavia, há certa insatisfação ou impossibilidade de a estas nos adaptarmos quando as taxamos de infundadas.

Em relação a se perceber a presença das convenções, basta sair à rua, embora possamos vê-las mesmo dentro de nossas residências, e atentar no fato de os homens usarem um tipo de indumentária bastante análogo entre si, já o mesmo ocorre com o sexo oposto, contudo não se vê amiúde homens com vestimentas femininas e vice-versa. Ademais, pode-se prestar atenção aos hábitos alimentares, porquanto é raro ver alguém comendo apenas pães no horário do almoço e se alimentando de algo que comumente comemos na refeição de meio-dia no momento do café vespertino. 

Quanto aos hábitos arbitrários expressos acima, pouca gente se objeta, visto que são  bastante simples de serem seguidos; em contrapartida, quem jamais ouviu imprecações acerca da gramática, por exemplo? Esta não deixa de estar na mesma categoria dos exemplos anteriores; o que a difere, contudo, é a dificuldade de dominá-la plenamente. O mesmo ocorre quando ouvimos impropérios por parte de particulares convivas de um banquete, que não veem sequer um ínfimo fundamento em todas aquelas regras de decoro na mesa, como utilizar determinado talher quando for nutrir-se de determinado alimento, alternando os utensílios de acordo com cada um dos pratos. 

Dando continuidade, há um outro ponto concernente às convenções, que realmente merece uma infinidade de impropérios e o título de descabido: são as classes sociais. Tomemos, por exemplo, a nossa língua falada, em tal modalidade é notório que todos cometemos "erros" a cada momento, entretanto alguns são admissíveis, enquanto outros transformam quem os proferiu em motivo de chacota. É comum falarmos "tu visse" ou "tu viu", e todos entendem, sem ninguém criticar, praticamente o mesmo ocorre com "ele entreteu a criança", e com mais uma miríade de exemplos distintos; todavia, basta alguém menos favorecido proferir um "pobrema", e já será considerado o confrade de diálogo mais estúpido da face da terra, porém, se formos julgar o que é certo e errado na fala, não estariam todos os exemplos dados neste parágrafo no conjunto dos incorretos? A mesma distinção ocorre quando alguém de poucos recursos financeiros pratica um furto, este é visto como o ser mais execrável existente, e se possível for, apedrejá-lo-ão em praça pública. Contudo, o mesmo não ocorre com quem sonega algo em seu imposto de renda, faz um "gato" na TV a cabo ou na internet, consegue de alguma forma ilícita pagar menos do que o valor correspondente a seus gastos em relação à conta de luz ou de água, entre outros exemplos. Dentro do que se convencionou, não são todas essas atitudes consideradas como errôneas ou criminosas? Então, por que apenas as ações cometidas com mais frequência por indivíduos com menor escolaridade e baixa fonte de renda são consideradas piores, dignas de punição?

Concluindo, não almejo uma impunidade geral, dentro da qual, todos possam fazer o que lhes aprouver, sem recear por consequências incômodas, porém é necessário haver o mesmo direito para todos, a fim de que não nos percamos naquilo que nós mesmos criamos e ajudamos a prosperar, conquanto não se saiba se foi ou não uma grande ideia.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Sob as estrelas


Na ruazinha, uma infinidade de casas coloridas
Todas iguais, independente das cores sortidas
Um rapaz ali passava, e como era de se esperar
Às idênticas residências não se destinava a olhar

Todavia, certo dia uma delas, de súbito, o atraiu
Pois o outono passava, estando a caminho o frio
Um lar roxo o encantou: era belo, calmo e cálido
Tendo o efeito de uma aquarela num olhar pálido

Entretanto, pôs-se a meditar se sensato seria trocar
Uma miríade de cores por um monocromático lar,
A visão de um teto qualquer, pela do céu e seu luar

Sendo assim, resolveu mudar seu percurso: “desista”,
Foi o que disse a si mesmo, perdendo, então, de vista
A casinha que nem sequer chegou a visitar.


quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Sepultando a sinceridade


“Sobretudo, não acredite nos seus amigos, quando lhe pedirem que seja sincero com eles. Só anseiam que alguém os mantenha no bom conceito que fazem de si próprios, ao lhes fornecer uma certeza suplementar, que extrairão de sua promessa de sinceridade. Como poderia a sinceridade ser uma condição da amizade? O gosto pela verdade a qualquer preço é uma paixão que nada poupa e a que nada resiste. É um vício, às vezes um conforto, ou um egoísmo. Portanto, se o senhor se encontrar nesse caso, não hesite: prometa ser verdadeiro e minta o melhor que puder.”
Albert Camus


Vincent andava vagarosamente pelas gélidas ruas de sua cidade natal, o sobretudo que vestia ostentava flocos de neve enviados pelo céu, caminhava com ambas as mãos nas costas e absorto em pensamentos, quando, de repente, foi acometido por um indivíduo cuja ocupação era vender certos produtos em uma loja. Este lhe perguntou se não gostaria de adentrar o estabelecimento a fim de ver se não se sentia atraído por algum dos acessórios ali comercializados. Vincent declinou o convite, retorquindo que, se tivesse interesse nos produtos de tal comércio, entraria por conta própria no lugar, não necessitando ser chamado. O vendedor sentiu-se um tanto desgostoso ante a fala de Vincent e lhe respondeu que ele poderia ao menos olhar a loja, pois, se desconhecesse os produtos, não saberia se naquele recinto há algo que lhe interesse ou não. Vincent lhe disse placidamente que não fazia compras simplesmente por fazê-las, porque julgava tal atitude infundada. Outrossim, questionou o vendedor acerca de seus motivos para ficar chateando os transeuntes com seus convites para conhecer a loja em que trabalhava, visto que podia-se notar claramente que não passava por necessidades financeiras, sendo assim, por que aceitara tal trabalho? Concluiu afirmando que poucas pessoas podem dar-se o luxo de não se vender; todavia, quem desfruta de tal possibilidade e mesmo assim o faz só pode ser chamado de idiota. Vincent deu as costas ao furioso rapaz e portou-se de forma indiferente ante as imprecações proferidas pelo outro. O estabelecimento em questão era um dos muitos cuja finalidade é enriquecer mediante o empobrecimento alheio, cobrando preços exorbitantes de seus consumidores e os ludibriando por intermédio das formas de pagamento.
Ao longo de seu caminho, passou por uma residência deveras suntuosa e questionou-se acerca do fundamento de se despender enormes quantias em frivolidades, e à sua mente se encaminhou o seguinte pensamento de Oscar Wilde: "As pessoas sabem o preço de tudo, mas não sabem o valor de nada". Não soube concluir precisamente por que tal frase lhe evocou a figura daquelas velhas ricas que pregam a caridade, o desapego; porém, são incapazes de ao menos retirar suas onerosas joias enquanto nos entediam com seus moralismos descabidos. Abominava moralismos sobremaneira. Tais senhoras são como o felino que nega devorar os canários da família; no entanto, podem-se notar diversas penas em seu focinho constantemente. Rememorou o quão zangada ficou certa senhora quando lhe externou seu ponto de vista ante a disparidade entre as ações da caridosa mulher e o conteúdo de seus conselhos altruístas.
Enquanto caminhava, outra reminiscência lhe veio à mente, rememorou um antigo colega de trabalho que se julgava uma sumidade em compreender os demais, todavia seu método de compreensão não era a psicologia ou alguma ciência análoga, porquanto se utilizava da astrologia para analisar a alma alheia. Na época, Vincent não pôde deixar de lhe proferir tal sentença de Victor Hugo: "Vivemos em tempos de terrível confusão. Ignora-se o que se deve saber e sabe-se o que se deve ignorar”; entretanto, fora ele o julgado, o ente condenado ao longo de grande parte de sua vida. Seu confrade de profissão ficou deveras furioso com o ponto de vista de nosso protagonista, embora não dispusesse de argumentos para negar os fatos apresentados por Vincent de que, por exemplo, os fundamentos da astrologia ainda são os mesmos dados por Ptolomeu no século II d.C., ou de que novos planetas foram descobertos com o passar do tempo e a astrologia nunca notou a "ausência" dos mesmos na hora de formular ou comprovar suas teses. Porém, é notório que a grande maioria das pessoas sente um certo desconforto em ter que dar as costas a velhas crenças com as quais estão tão afeitas. Destarte, é preferível persistir no erro.
Vincent finalmente chegou ao seu lar, sentou-se defronte ao piano e pôs-se a tocar uma melancólica canção. Muitos elogiavam seus talentos como músico, e um número ainda maior lamentava-se por não dispor de tais dons, comentário este que enervava o fabuloso instrumentista, porque julgava uma baboseira atribuir ao divino ou ao destino a incapacidade das pessoas de dominar um  instrumento musical, esta que deveria ser atribuída à preguiça e à falta de afinco por parte dos mesmos indivíduos. Vincent lhes expunha sem receio tal ponto de vista, e, obviamente, tais seres ficavam insatisfeitos com seus comentários impróprios, porém Vincent pouco se importava. A noite foi caindo, e o piano, oscilando entre canções de alegria e de lamento. A solidão jamais poderia ser tão sublime.
 

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Formulação


Se fosse inquirido acerca das principais qualidades de que um indivíduo deve dispor para ser agradável, responderia inteligência, senso de humor e, sobretudo, imaginação, porque se obtivesse apenas as duas primeiras, seria como possuir apenas conteúdo, mas necessitar de forma. 

Tomando por base o que Schopenhauer dissera: "Pois, como podemos supor, um bom cozinheiro pode dar gosto até a uma velha sola de sapato; da mesma maneira, um bom escritor pode tornar interessante mesmo o assunto mais árido.”, trocando em miúdos: havendo imaginação, o assunto mais fastidioso pode se tornar aprazível. O mesmo não sucede, contudo, se houver apenas uma inteligência aguçada, porque é notório que há uma infinidade de sabichões enfadonhos, assim como seres que se julgam engraçados por dizerem quaisquer baboseiras.

Oscar Wilde afirma que uma relação tanto de amor como de amizade só pode ser mantida mediante o diálogo, julgo a conversa um fator relevantíssimo, entretanto um corpo é incapaz de se manter vivo sem uma certa harmonia entre diversos órgãos; porém, pode-se viver tranquilamente sem um dedo ou uma mão. Em suma, o diálogo é uma parte vital, mas creio que necessite de algo mais, embora possua uma importância, quiçá, inigualável.

Concluindo, a forma é uma espécie de tempero que faz toda a diferença, pois de nada serve preparar os alimentos mais suculentos, se, na hora de os consumirmos, eles não tiverem ao menos algumas pitadas de sal. O mesmo há em relação aos colóquios, e tal ilustração pode ser feita por intermédio de outra citação de Schopenhauer: “A diferença em questão, entre a matéria e a forma, mantém sua validade mesmo no que diz respeito à conversação. O que torna um homem capaz de conversar bem é a compreensão, o critério, o humor e a vivacidade que dão à conversação sua forma”.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Soneto Insone


Soneto sensato, soneto sem sal
Sua forma disfarça as faces do mal 
Sua força destroça o que é correto 
Distorcendo o caminho outrora reto

Frutos infrutíferos furtivamente
Substituem os sadios, impunemente
Dissabores diários tornam-se naturais
Diversas fontes de insatisfação irracionais

Como ironizou o poeta com profundidade
“O mal consentido faz parte da bondade”
E grande parte das inversões vira verdade

Um sino poderia incrivelmente alto badalar
E a uma multidão do disparate despertar
Uma derradeira inversão e tudo em seu lugar


sábado, 15 de agosto de 2009

Sons de mudança


Talvez haja conforto em tal situação 
Porém o que importa, se inexiste emoção 
Quiçá haja um receio ante o que irão pensar 
Sendo isso suficiente para não mudar 

Habita algo nem inferno nem paraíso 
Momentos de angústia e de sorriso 
Há um empecilho intitulado vaidade 
Que nos afugenta e desvia da felicidade 

Anseios sinceros, temores atrozes 
Muitos desincentivos, muitas vozes 
Consternação e condenação velozes 

Porém, não seria sensato ao menos uma vez 
Esquecer o alarido e entregar-se à surdez?; 
Ouvindo apenas a si mesmo, eis a sensatez

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Divagações descritas


"Certas vezes não é de se estranhar que a arte seja mais tocante do que sua inspiração: a realidade? Quiçá o seja, pois nos identificamos mais com os personagens ficcionais, visto que não são meros nomes que vemos na televisão ou lemos no jornal, porém seres cujas trajetórias e infortúnios nos são narrados minuciosamente, tais acompanhamentos deles nos aproximam e de suas desditas nos apiedamos. Contudo, é notório que a realidade é mais chocante do que a arte, tanto em relação à felicidade, quanto à tristeza e à condolência pelo próximo; entretanto, a forma como tudo ocorre é de bastante relevância.

Como já foi dito, a realidade inspira a arte (e vice-versa), esta que é uma forma de representação daquela, porém pode-se notar claramente o desejo de se transmitir um pouco de imaginação para a realidade, do contrário não haveria tantas obras repletas de seres inexistentes,  com capacidades inatingíveis para nós, meros mortais. Todavia, será que tal ânsia pelo místico não contribui para a proliferação das superstições? Como disse Carl Sagan, quem, embora não crendo, nunca pensou em quais seriam seus desejos caso encontrasse uma lâmpada mágica? Tal exemplo não é de se estranhar, pois desde o berço já somos imersos em crendices, eu mesmo, em tenra idade, já fui levado a benzedeiras e fiz cirurgias astrais. 

É sabido que as crianças creem em praticamente tudo que lhes afirmamos, destarte, se lhes dissermos que façam três pedidos antes de amarrar certa fitinha no pulso (divina, decerto!), porque, quando esta cair por conta própria, realizar-se-ão os anseios escolhidos, com certeza elas acreditarão, tomei este exemplo, pois o vi recentemente. Portanto, há outra forma de traduzir isso além de uma atitude cujo único resultado será o de aproximar pequenos indivíduos de grandes misticismos, imensas baboseiras?

Concluindo, creio que a fantasia merece seu lugar na arte; porém, a natureza e o próprio homem com suas descobertas e invenções já nos brindaram com uma infinidade de maravilhas, que julgo prescindirmos de misticismos na vida real, pois, neste caso, eles somente servirão para desviar nossos olhares das verdadeiras maravilhas."

sábado, 1 de agosto de 2009

Diálogo sobre a felicidade


Madrugada, dois amigos conversam defronte ao mar.

George: O que você me diz acerca da felicidade?

Mary: Creio ser algo grandioso; que se situa, porém, em ínfimas fontes de satisfação.

George: Mas de que maneira a alegria pode residir em coisas mesquinhas? Porque, para mim, ela se encontra no que há de mais sublime.

Mary: Na verdade, as formas de se alcançar a felicidade são relativas, do mesmo modo que a saciedade pode ser obtida mediante a ingestão dos mais diversos tipos de alimento, não somente por intermédio das comidas mais sublimes, preparadas somente por exímios cozinheiros.

George: Concordo em um aspecto com sua metáfora, pois assim como a saciedade, a alegria não passa de um estado. Portanto se não for instigada, em dados momentos, acabará por cessar, assim como as chamas de uma fogueira.

Mary: Estou de acordo com sua opinião, meu amigo, porém é um tanto útil essa constante necessidade de renovação por parte da felicidade, porquanto a adversidade é deveras relevante para o nosso crescimento.

George: Por que você considera a adversidade como uma bênção? Isso denota ser otimismo desmedido, minha cara.

Mary: Pois veja bem, até mesmo a dor é muito importante, porque se não a sentíssemos, correríamos o risco de nos ferir e só nos darmos conta disso quando fosse tarde demais para tomar qualquer atitude, no que tange a momentos de desdita, julgo-lhes relevantes, porque fazem com que conheçamos o mundo e a nós mesmos, livrando-nos de certas frivolidades que a felicidade mascara, mesmo que não propositadamente.  

George: Você tem certa razão, mas ninguém pode declarar-se feliz até o fim de seus dias, visto que pode ser acometido por uma grande adversidade, cujo mal é extirpar a felicidade até mesmo das lembranças.

Mary: Creio que um grande infortúnio é incapaz de definir uma vida como feliz ou desditosa tendo somente a si próprio como base, porque se uma excelente partida foi feita desde o princípio, certas desvantagens em seus instantes finais não serão suficientes para decretar uma derrota.

O tempo se esvai, enquanto os dois amigos, felizes, continuam a filosofar.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Fenecer


Certo dia, deparei-me com a afirmação de que a infância não possui nada de sublime, afinal somos muito mais nós mesmos com o amadurecimento. Então o que seria esse amadurecimento, um botão virando espinho com o passar do tempo e se imaginando uma rosa, porque assim o jardineiro almejou? Possivelmente, pois não há perfídia, vaidade e nem mesmo preconceito em nossos primeiros anos, destarte, a definição correta para os anos posteriores não seria apodrecimento?

Sêneca atesta que morremos piores do que nascemos, devido a tantos vícios adquiridos ao longo do percurso existencial, e creio não haver nenhum equívoco em seu ponto de vista. Quiçá tal piora se deva ao fato de tomarmos sempre os piores exemplos, como um veneno ao invés de uma cura, porquanto é notório que convivemos diariamente com o sublime e com o execrável, muitas vezes ambos conjugados em uma mesma pessoa; todavia, é como disse acertadamente Molière: “É o lado melhor que a gente deve imitar numa pessoa, nunca a maneira como ela cospe, tosse ou se assoa”.

Concordo com essa miríade de equivocados que sentem saudades da infância, porque éramos isentos de responsabilidades, talvez  fôssemos mais livres do que somos hoje, embora houvesse uma série de restrições decorrentes de nossa tenra idade; podíamos, contudo, nos deleitar com as brincadeiras mais divertidas e diversas sem que ninguém nos reprovasse por isso. Porém, ao se ficar mais velho, veem-se aquelas antigas fontes de diversão como águas contaminadas pelo passar do tempo. Meu intento não é pregar que brinquemos de bonecos, por exemplo, pelo resto da vida, mas sim valorizar formas simples de alegria que são deixadas para trás com o amadurecimento.

Tal tema me faz recordar um conto interessantíssimo de Tchékhov, no qual um personagem pobre consegue se tornar rico após um pacto com o diabo, entretanto a riqueza lhe traz grandes desolações, pois o reprovavam constantemente na rua por tocar certo instrumento musical enquanto caminhava, entre outras formas simples e inócuas de contentamento que não condiziam com sua classe social, logo eram censuradas. O mesmo ocorre com o amadurecimento, pois certas atitudes não condizem com nossa idade, todavia a perfídia, a vaidade, o desdém pelo próximo e o preconceito são atitudes bastante naturais. Há um contraste interessante entre os humanos e os frutos, visto que esses se tornam mais saborosos e apetecíveis com o amadurecimento.


terça-feira, 21 de julho de 2009

Realidade desejosa de imaginação


Pode-se criar uma fábula
Tornando o herói um crápula
Fazendo com que a princesa
Seja bondosa como toda realeza

Porém, além do final feliz
Há um inconveniente que diz
Haver diferença entre a vida real
E a fantasia e seu mundo surreal

Nesta daqui, há espaço pra tristeza
Paira sobre nós a incerteza
Ante a bondade da princesa

Não há aberrações disformes
Contudo, diferenças e uniformes
Monstros humanos desinformados

domingo, 19 de julho de 2009

Fria resignação


Descerrou os olhos e viu tudo ganhar forma e coloração 
O frio há muito imperava e num átimo deu fim à ilusão 
Tudo retornou às sombras, sua alma no escuro 
Almejava fugir, mas era inexeqüível transpor o muro  

Certa ânsia incomum por mudanças lhe acomete 
Com a fúria de um cometa, sua vida mudar promete 
Ergue-se do leito, e celeremente busca dias cálidos 
Um adeus aos momentos gélidos e aos sentimentos áridos 


Porém, a fim de se acostumar com o frio de cedo 
Senta-se em frente à estufa e enfrenta o medo, 
Estufa o peito e diz: “a mudança há de acontecer”
Contudo, é notório, que seu destino o homem deve tecer

Soou lhe difícil criar uma canção desprovida de lamentos
Porque escondia de si próprio os instrumentos
Destarte, imperou o silêncio e este não foi destronado
Quando não se evitam os vícios, torna-se deles aliado

Sendo assim, esperou para livrar-se do frio o verão
Contudo, nada ocorreu, nenhuma mudança de estação
Conformou-se com um perene e impiedoso inverno
Pois seu regozijo da temperatura tornou-se subalterno.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Traços destratados


Surgiu como uma folha em branco
Mas contagiaram-no com o pranto
Iniciou com alguns riscos
Logo estava cheio de rabiscos

Traços de uma única cor
Esta que evoca a dor
Ao tentar a mesma apagar
Viu nada saindo do lugar

No lugar de um belo desenho
Há nada mais que um triste cenho
Cujas lágrimas borram o papel

Em vez de um belo poema
Ficou-se em um dilema:
Foi esta folha usada bem?

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Analogias entre realidade e ficção


Será que já nascemos predestinados ao sucesso ou ao fracasso, ao regozijo ou à agonia? Primeiramente, deve-se frisar a inexistência de qualquer influência metafísica em tal questão, como Deus ou algo intitulado de destino. A resposta a tal interrogação é afirmativa, uma vez que se um ser humano é fruto de um vínculo entre indivíduos imersos na pobreza, este estará fadado, na maioria das vezes, a navegar no turbulento mar da miséria. Da mesma forma, tal afirmação referente a um percurso imutável é válida em relação a indivíduos pertencentes às castas mais baixas da Índia, visto que sua ascensão social é praticamente impossível. Negou-se a influência de desígnios divinos em tais ocorrências, porque as mesmas são regidas pela arbitrariedade, são meras questões culturais; dotadas, contudo, de força e perversidade tremendas.

No filme Gattaca, é possível identificar os indivíduos inferiores, chamados de “inválidos” e os superiores, a identificação é feita mediante uma análise de suas cargas genéticas. Deste modo, obtém os melhores empregos quem é dado como detentor de grande capacidade, sendo o principal teste de admissão um exame de DNA. O mesmo ocorre nos dias contemporâneos, porquanto o principal critério de avaliação é a classe social à qual se pertence, nossas qualidades adquiridas por mérito próprio ficam em segunda instância. Entretanto, é um tanto infundado atribuir maior relevância àquilo que já se nasceu possuindo, ao invés do que foi conquistado por intermédio do próprio empenho. Como foi dito por Sêneca: “Se alguém, ao comprar um cavalo, não o examina, mas olha a sela e os arreios, é estúpido; assim é ainda mais estúpido quem julga um homem pela vestimenta e pela condição social, que não passa de uma cobertura externa”.

Contudo, há uma quebra de tais regras na obra cinematográfica, porque o personagem principal, Vincent, consegue se tornar um astronauta, esse que era o seu sonho. Embora tal meta fosse vista como inexeqüível para todos à sua volta, seus pais, seu irmão, etc., visto que o protagonista era considerado um inválido, pois possuía tendência a problemas cardíacos, ademais não era dotado de uma carga genética adequada à sua ambição. Entretanto, conseguiu chegar aonde almejava, mediante treinos físicos e estudos incessantes. Outrossim, foi-lhe necessário se passar por outra pessoa, pois precisava mostrar-se um “válido”, do contrário não teria como se tornar um astronauta.

No filme, Deus foi substituído pela ciência, sendo essa a nova divindade vigente, havendo na própria obra os “filhos de Deus”, que são os indivíduos cujo nascimento é natural, e os “filhos da Ciência”, estes possuindo as vantagens de nascerem munidos de cargas genéticas bastante favoráveis. Talvez estejamos rumando à mesma comutação de deuses, pois como Bertrand Russell proferiu: “A maioria dos homens hoje se sente desconfortável em rezar pela chuva, em virtude da meteorologia; mas não sente tanto desconforto em relação a preces para um coração saudável. Se as causas de um coração sadio fossem tão conhecidas como as causas da chuva, essa diferença cessaria.”.

Entretanto, tais alternâncias de divindades de nada servirão para melhorar nossa existência, se um dos deuses mais descabidos e atrozes não for destronado, este deus é a cultura. As tradições são vistas como divinas há muitos anos, pois poucos ousam questioná-las e muito menos agir em desacordo com as mesmas, porquanto a punição destinada a esses insolentes ou lunáticos é um verdadeiro inferno terrestre. Tal divindade é tão perversa quanto certo deus asteca, cuja exigência consistia em um sacrifício diário a fim de auxiliar o sol a nascer.

Concluindo, são dignos de mérito os indivíduos capazes de suplantar as barreiras culturais que lhes são impostas desde o nascimento, cujos sonhos são sólidos, não se desfazendo ante uma ínfima ou imensurável dose de desmotivação. Infelizmente, há muito poucos desses seres divinos, em contrapartida o absurdo e as tradições recebem cada vez mais altares, honrarias e sacrifícios.

domingo, 28 de junho de 2009

Identidade de indivíduos sem rostos


“Um organismo vivo dispõe da capacidade de se adaptar rapidamente, habituar-se e acomodar-se a qualquer atmosfera, senão o homem deveria sentir a cada momento que fundo irracional têm às vezes as suas atividades racionais e quão pouca verdade há em atividades tão sensatas e terríveis pelos seus resultados”
Tchekhov 


Como presidiários, será que não somos nada além de números? Entes sem rostos e sem nenhum pensamento próprio? Em resumo, indivíduos sem identidade individual. Pode parecer atemorizante tal perspectiva a quem julga essencial haver um quê de beleza e conveniência na verdade, como disse Tchekhov: “O remédio deve ser doce; a verdade, bela... E essa fantasmagoria o homem assumiu desde os tempos de Adão... De resto... Quem sabe tudo isso é natural e deve ser assim mesmo... Não são poucas na natureza as fraudes e as ilusões úteis...”.

Decerto, nos acostumamos a uma série de coisas infundadas, pois quem não vê com espanto o fato de um indivíduo já nascer fadado à miséria caso seja pertencente a uma das castas mais baixas na Índia, ou qual ser humano americano ou europeu, por exemplo, não é tomado de imensa aversão à forma como as mulheres afegãs são tratadas. Tudo isso, dizem, são questões culturais; porém, estas têm por função comutar a identidade individual por uma identidade coletiva. E se alguém resolve se distanciar de tais convenções é visto como insano e tentam isolá-lo ou até mesmo exterminá-lo. Pense em uma mulher afegã que resolvesse se revoltar contra todos aqueles costumes que lhe soam descabidos, ela não teria força alguma para lutar sozinha e seria vista como doida, quando, na verdade, seria a única correta. Porém, como ironizou Bertrand Russell, a loucura individual é vista como um disparate, enquanto a loucura coletiva é aceitável e não deve ser questionada.

Portanto para que haja mudanças, não se devem utilizar formas que visam gerar o caos unicamente, pois ocorreria o mesmo dito acima, tomemos outro exemplo, se no ápice da escravidão, um servo julgasse aquilo tudo infundado e resolvesse ir embora e levar todos que quisessem ir em sua companhia, este sofreria consequências atrozes por parte de seu senhor em decorrência de tal atitude não condizente com a mentalidade da época, poderia até sofrer humilhações como as argolas no pescoço de fugitivos das minas de carvão. Destarte, devemos procurar mudar a mentalidade dos demais ante tais absurdos, porquanto foi dessa forma que houve mudanças em relação à escravatura. Contudo, é correto afirmar que em determinadas culturas haverá punições mais árduas, enquanto em outras, estas serão mais brandas.

Dando continuidade, é relevante citar novamente Russell, pois este ironizou dizendo que parece que o pecado é geográfico. Tal sentença é incontestável, rimos uns da cultura dos outros, enquanto todas são um disparate, pois não pensamos em suas validades, apenas agimos cegamente de acordo com nossas identidades coletivas. Tomemos como exemplo Mersault, o protagonista de O estrangeiro, grande obra de Camus, que foi julgado como culpado pela sociedade pelo fato de ser diferente da grande maioria, por não trivializar seus sentimentos, não dizer que amava quando não o fazia realmente, e por não chorar com a morte de sua mãe, como é lei em nossa sociedade, houve o fato de assassinar um árabe, mas este ficou em segunda instância, sem a mesma relevância do crime anterior. 

Concluindo, o indivíduo só poderá pensar e agir por si mesmo quando conseguir se livrar de uma infinidade de amarras que lhe puseram desde o seu nascimento, ademais, deve-se notar o enorme abismo existente entre as convicções das pessoas e um modo de agir concernente às mesmas em diversos contextos sociais, pois tais atitudes relativas à identidade individual vão de encontro à identidade coletiva vigente em nossa sociedade. Porém, não se deve procurar agir em conformidade com os ideais alheios, simplesmente por esses estarem em alta na contemporaneidade, porque como disse Russell: “Não tenhas inveja daqueles que vivem num paraíso dos tolos, pois apenas um tolo o consideraria um paraíso.” 

À espera de mudanças vagarosas

"Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é, portanto, inevitável. Mas não devemos reconhecer isso. Quem não pode deixar de ter escravos, não fará melhor chamando-os de homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para não desesperá-los. Esta compensação certamente lhes é devida, não acha? Desse modo, eles continuarão a sorrir e nós ficaremos com a consciência tranqüila"
Albert Camus – A Queda


Chegaram ao local da reunião de Friedrich, seu motorista, Joseph, abriu-lhe a porta e recebeu a ordem de aguardar no veículo, até o término dos afazeres de seu patrão. Anuiu, e sentou-se a fim de esperar. Achava um tanto infundada tal situação, pois por que deveria ele esperar cerca de quatro horas no mesmo lugar? Por que não faziam o contrário: ele teria liberdade de ir aonde quisesse, e quando a reunião terminasse, Friedrich poderia ligar-lhe, e Joseph viria buscá-lo, fazendo com que seu patrão não esperasse mais do que alguns minutos? Todavia, eles não são iguais, porquanto para um é inadmissível ter de aguardar quinze minutos, em contrapartida, o outro é impossibilitado de se mostrar insatisfeito com uma espera de quatro horas, porque com essa atitude correria o risco de perder seu emprego.

Entretanto, Friedrich deixava alguns livros no veículo e lhe dizia que podia lê-los para passar o tempo, porém jamais deve ter passado por sua cabeça a possibilidade de Joseph não sentir satisfação com a leitura ou não compartilhar dos mesmos gostos literários de seu senhor. Decerto nunca teve tais pensamentos, visto que lhe era mais cômodo deixar os livros e julgar-se a pessoa mais bondosa possível, pois proporcionava uma cura para o tédio de seu subordinado. Contudo, Joseph não tinha do que reclamar, diziam-lhe, pois havia muitos indivíduos em condições piores do que a sua, outrossim, era comum os motoristas esperarem seus patrões por horas a fio, sendo assim ninguém jamais os repreendia por suscitarem tais esperas, logo sentiam-se indiferentes com tal agonia provocada em seus empregados, é como uma antiga crença de que os escravos não necessitavam de descanso aos domingos, pois o desconheciam. Joseph lembrou-se do que lera em um de seus romances, não os enfadonhos deixados por seu chefe, mas um de seu agrado, este trecho que dançava em sua memória: "O mal consentido faz parte da bondade"*. 

A seguir, uma infinidade de pensamentos o acometeu, trabalhava cerca de dez horas por dia, muitas vezes nos finais de semana, recebendo em troca uma exígua remuneração com a qual pagava o aluguel de sua residência, comprava alimentos para sua família e, quando o dinheiro lhe permitia, adquiria um novo clássica literário para se deleitar nas incessantes horas de espera. 

O tempo andou a passos vagarosos, porém finalmente Friedrich retornou radiante de sua reunião, pelo visto as coisas correram bem. Joseph lhe dirigiu um sorriso, pois sabia que seu patrão não tolerava expressões de infelicidade ou insatisfação nos semblantes de seus funcionários. 

*Victor Hugo - Os miseráveis

sábado, 27 de junho de 2009

Citações no cadafalso


Hoje, fui entregar um trabalho de literatura na faculdade, no qual havia uma citação de Victor Hugo condizente com o tema do escrito; todavia, foi-me exigida a referência bibliográfica do livro, o ano de publicação da edição, a página do trecho escolhido, etc. Em suma, se não possuísse tal obra em minha residência, ser-me-ia impossível fazer a citação devido aos empecilhos oriundos das benditas referências bibliográficas.

Agora me pergunto: e quanto àqueles alunos que não dispõem em seus lares dos livros que leram? Para essa maioria, então, tornou-se inexequível fazer uma mera citação em um trabalho de universidade, porquanto ninguém guardará para si próprio mais do que o trecho o qual tanto lhe agradou, a obra da qual o mesmo fora retirado e a devida página na qual se encontrava. Anotar o ano de publicação da obra e a sua referência bibliográfica está fora de cogitação, tanto porque o leitor não aponta tal trecho com a segunda intenção de futuramente citá-lo em um trabalho universitário, mas sim pois esse o agradou enormemente.

Concluindo, a grande ironia reside no fato de o trecho em questão ser de autoria de Victor Hugo, um verdadeiro pai dos oprimidos; entretanto, só quem dispõe de condições financeiras para possuir obras literárias é que estará apto a citar o grande poeta.