domingo, 7 de fevereiro de 2010

Recordações recortadas




Sentou-se entediado no sofá, sua mente, ao contrário do corpo, pôs-se a vagar sem rumo certo, de forma análoga ao ente irracional que comumente se dirige aos cantos da cidade mais feios e desastrosos, seu pensamento locomoveu-se para suas inumeráveis fontes de infelicidade. Talvez não houvesse praças, nem agradáveis monumentos naquele ínfimo município.

Divisou a série de sonhos que acalentara em sua mocidade, eram-lhe belíssimos outrora; contudo, como lhe soavam horrendos nos dias contemporâneos. A beleza pode ser repulsiva diante de certos estados de espírito, visto que contrasta ardentemente com a fealdade na qual se está inserido. Entretanto, foi dado prosseguimento à viagem, vislumbrou a solidão, lembrou da perda de alguns de seus estimados familiares. Nunca dispôs de grandes amigos, pois não estava afeito a aceitar a opinião alheia.

Porém, possuía um companheiro, era um pequeno cachorro, que morava em sua residência fazia alguns anos. No limiar de sua relação, gerava-lhe muitos contentamentos o exíguo canino; estava sempre alegre e era bastante brincalhão. Ambos passeavam pelo parque ao entardecer ou ao despontar da aurora, tais andanças eram consideradas agradabilíssimas. Como já foi dito, todavia, provavelmente não havia mais parques em seu mundo interior, pois estes tornaram-se cemitérios, e as frondosas árvores, sepulcros, nos quais foram enterradas as poucas belas recordações, recortadas por ele próprio de sua memória.

Estaria o cãozinho também naquele sinistro local? Acredito que não, apenas os fantasmas de alguns fracassos habitavam aquele recinto. Eram poucos, pois houve poucas tentativas, sendo inconcebíveis derrotas sem batalhas, o mesmo se dá no que concerne aos êxitos. Nosso personagem não combatia muito amiúde, na verdade, sempre capitulava ao tédio e à desdita; depunha suas armas celeremente, sendo seus adversários inclementes ante inimigos inermes. Sim, podem-se ditar suas afrontas e narrá-las por inteiro em pouquíssimas linhas. Eis uma das razões por que este escrito não descreve seus feitos, de outra forma já estaria findado, fadado a jamais ser lido.

Com o decorrer do tempo, o pequeno canino cessou com as brincadeiras, passando a maior parte de seu tempo deitado em um dos cantos mais frescos da sala. Apenas erguia-se rapidamente quando tencionava solicitar comida a seu dono. A fome do animal equiparava-se à resignação do rapaz. Contudo, tal comportamento oriundo do cachorrinho partia o coração do homem, pois sentia saudades do caráter brincalhão do outro. Deduziu que foram pura hipocrisia os momentos que passaram juntos em épocas longínquas, porque seu bichinho de estimação apenas agia por interesses. Entretanto, no auge de sua mesquinharia, ansiou que a falsidade retornasse ao cãozinho, destarte esse não seria tão explícito em seu insaciável anseio de alimentar-se.

Alguns dias sucederam, e a porta da residência foi deixada aberta pelo indivíduo que ali vivia, poucos instantes de descuido foram suficiente para suscitar a fuga do animal, este que nunca mais retornou. Às boas lembranças que tiveram juntos foi destinado um jazigo dentro da imensa necrópole presente em seu espírito; porém, ao insucesso proporcionado pela recente escapulida foi concedido um espaço ao ar livre, a fim de que fosse visto sempre que a alma fosse observada.


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