quinta-feira, 9 de julho de 2009

Analogias entre realidade e ficção


Será que já nascemos predestinados ao sucesso ou ao fracasso, ao regozijo ou à agonia? Primeiramente, deve-se frisar a inexistência de qualquer influência metafísica em tal questão, como Deus ou algo intitulado de destino. A resposta a tal interrogação é afirmativa, uma vez que se um ser humano é fruto de um vínculo entre indivíduos imersos na pobreza, este estará fadado, na maioria das vezes, a navegar no turbulento mar da miséria. Da mesma forma, tal afirmação referente a um percurso imutável é válida em relação a indivíduos pertencentes às castas mais baixas da Índia, visto que sua ascensão social é praticamente impossível. Negou-se a influência de desígnios divinos em tais ocorrências, porque as mesmas são regidas pela arbitrariedade, são meras questões culturais; dotadas, contudo, de força e perversidade tremendas.

No filme Gattaca, é possível identificar os indivíduos inferiores, chamados de “inválidos” e os superiores, a identificação é feita mediante uma análise de suas cargas genéticas. Deste modo, obtém os melhores empregos quem é dado como detentor de grande capacidade, sendo o principal teste de admissão um exame de DNA. O mesmo ocorre nos dias contemporâneos, porquanto o principal critério de avaliação é a classe social à qual se pertence, nossas qualidades adquiridas por mérito próprio ficam em segunda instância. Entretanto, é um tanto infundado atribuir maior relevância àquilo que já se nasceu possuindo, ao invés do que foi conquistado por intermédio do próprio empenho. Como foi dito por Sêneca: “Se alguém, ao comprar um cavalo, não o examina, mas olha a sela e os arreios, é estúpido; assim é ainda mais estúpido quem julga um homem pela vestimenta e pela condição social, que não passa de uma cobertura externa”.

Contudo, há uma quebra de tais regras na obra cinematográfica, porque o personagem principal, Vincent, consegue se tornar um astronauta, esse que era o seu sonho. Embora tal meta fosse vista como inexeqüível para todos à sua volta, seus pais, seu irmão, etc., visto que o protagonista era considerado um inválido, pois possuía tendência a problemas cardíacos, ademais não era dotado de uma carga genética adequada à sua ambição. Entretanto, conseguiu chegar aonde almejava, mediante treinos físicos e estudos incessantes. Outrossim, foi-lhe necessário se passar por outra pessoa, pois precisava mostrar-se um “válido”, do contrário não teria como se tornar um astronauta.

No filme, Deus foi substituído pela ciência, sendo essa a nova divindade vigente, havendo na própria obra os “filhos de Deus”, que são os indivíduos cujo nascimento é natural, e os “filhos da Ciência”, estes possuindo as vantagens de nascerem munidos de cargas genéticas bastante favoráveis. Talvez estejamos rumando à mesma comutação de deuses, pois como Bertrand Russell proferiu: “A maioria dos homens hoje se sente desconfortável em rezar pela chuva, em virtude da meteorologia; mas não sente tanto desconforto em relação a preces para um coração saudável. Se as causas de um coração sadio fossem tão conhecidas como as causas da chuva, essa diferença cessaria.”.

Entretanto, tais alternâncias de divindades de nada servirão para melhorar nossa existência, se um dos deuses mais descabidos e atrozes não for destronado, este deus é a cultura. As tradições são vistas como divinas há muitos anos, pois poucos ousam questioná-las e muito menos agir em desacordo com as mesmas, porquanto a punição destinada a esses insolentes ou lunáticos é um verdadeiro inferno terrestre. Tal divindade é tão perversa quanto certo deus asteca, cuja exigência consistia em um sacrifício diário a fim de auxiliar o sol a nascer.

Concluindo, são dignos de mérito os indivíduos capazes de suplantar as barreiras culturais que lhes são impostas desde o nascimento, cujos sonhos são sólidos, não se desfazendo ante uma ínfima ou imensurável dose de desmotivação. Infelizmente, há muito poucos desses seres divinos, em contrapartida o absurdo e as tradições recebem cada vez mais altares, honrarias e sacrifícios.

Um comentário:

Expectatore disse...

Bela reflexão, Michel. Concordo com seu ponto de vista quanto a esse dilema - a alternância de "divinizações" na história. Não adianta se libertar de uma tradição totalmente absurda só para substituí-la por outra ainda pior. E esse apego do homem a essas tradições serve somente para a desvalorização dos indivíduos - que deveria ser o centro da nossa discussão - e não uma mera periferia nessas tolices que se propagam por aí. Abraço de um leitor.