quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Sepultando a sinceridade


“Sobretudo, não acredite nos seus amigos, quando lhe pedirem que seja sincero com eles. Só anseiam que alguém os mantenha no bom conceito que fazem de si próprios, ao lhes fornecer uma certeza suplementar, que extrairão de sua promessa de sinceridade. Como poderia a sinceridade ser uma condição da amizade? O gosto pela verdade a qualquer preço é uma paixão que nada poupa e a que nada resiste. É um vício, às vezes um conforto, ou um egoísmo. Portanto, se o senhor se encontrar nesse caso, não hesite: prometa ser verdadeiro e minta o melhor que puder.”
Albert Camus


Vincent andava vagarosamente pelas gélidas ruas de sua cidade natal, o sobretudo que vestia ostentava flocos de neve enviados pelo céu, caminhava com ambas as mãos nas costas e absorto em pensamentos, quando, de repente, foi acometido por um indivíduo cuja ocupação era vender certos produtos em uma loja. Este lhe perguntou se não gostaria de adentrar o estabelecimento a fim de ver se não se sentia atraído por algum dos acessórios ali comercializados. Vincent declinou o convite, retorquindo que, se tivesse interesse nos produtos de tal comércio, entraria por conta própria no lugar, não necessitando ser chamado. O vendedor sentiu-se um tanto desgostoso ante a fala de Vincent e lhe respondeu que ele poderia ao menos olhar a loja, pois, se desconhecesse os produtos, não saberia se naquele recinto há algo que lhe interesse ou não. Vincent lhe disse placidamente que não fazia compras simplesmente por fazê-las, porque julgava tal atitude infundada. Outrossim, questionou o vendedor acerca de seus motivos para ficar chateando os transeuntes com seus convites para conhecer a loja em que trabalhava, visto que podia-se notar claramente que não passava por necessidades financeiras, sendo assim, por que aceitara tal trabalho? Concluiu afirmando que poucas pessoas podem dar-se o luxo de não se vender; todavia, quem desfruta de tal possibilidade e mesmo assim o faz só pode ser chamado de idiota. Vincent deu as costas ao furioso rapaz e portou-se de forma indiferente ante as imprecações proferidas pelo outro. O estabelecimento em questão era um dos muitos cuja finalidade é enriquecer mediante o empobrecimento alheio, cobrando preços exorbitantes de seus consumidores e os ludibriando por intermédio das formas de pagamento.
Ao longo de seu caminho, passou por uma residência deveras suntuosa e questionou-se acerca do fundamento de se despender enormes quantias em frivolidades, e à sua mente se encaminhou o seguinte pensamento de Oscar Wilde: "As pessoas sabem o preço de tudo, mas não sabem o valor de nada". Não soube concluir precisamente por que tal frase lhe evocou a figura daquelas velhas ricas que pregam a caridade, o desapego; porém, são incapazes de ao menos retirar suas onerosas joias enquanto nos entediam com seus moralismos descabidos. Abominava moralismos sobremaneira. Tais senhoras são como o felino que nega devorar os canários da família; no entanto, podem-se notar diversas penas em seu focinho constantemente. Rememorou o quão zangada ficou certa senhora quando lhe externou seu ponto de vista ante a disparidade entre as ações da caridosa mulher e o conteúdo de seus conselhos altruístas.
Enquanto caminhava, outra reminiscência lhe veio à mente, rememorou um antigo colega de trabalho que se julgava uma sumidade em compreender os demais, todavia seu método de compreensão não era a psicologia ou alguma ciência análoga, porquanto se utilizava da astrologia para analisar a alma alheia. Na época, Vincent não pôde deixar de lhe proferir tal sentença de Victor Hugo: "Vivemos em tempos de terrível confusão. Ignora-se o que se deve saber e sabe-se o que se deve ignorar”; entretanto, fora ele o julgado, o ente condenado ao longo de grande parte de sua vida. Seu confrade de profissão ficou deveras furioso com o ponto de vista de nosso protagonista, embora não dispusesse de argumentos para negar os fatos apresentados por Vincent de que, por exemplo, os fundamentos da astrologia ainda são os mesmos dados por Ptolomeu no século II d.C., ou de que novos planetas foram descobertos com o passar do tempo e a astrologia nunca notou a "ausência" dos mesmos na hora de formular ou comprovar suas teses. Porém, é notório que a grande maioria das pessoas sente um certo desconforto em ter que dar as costas a velhas crenças com as quais estão tão afeitas. Destarte, é preferível persistir no erro.
Vincent finalmente chegou ao seu lar, sentou-se defronte ao piano e pôs-se a tocar uma melancólica canção. Muitos elogiavam seus talentos como músico, e um número ainda maior lamentava-se por não dispor de tais dons, comentário este que enervava o fabuloso instrumentista, porque julgava uma baboseira atribuir ao divino ou ao destino a incapacidade das pessoas de dominar um  instrumento musical, esta que deveria ser atribuída à preguiça e à falta de afinco por parte dos mesmos indivíduos. Vincent lhes expunha sem receio tal ponto de vista, e, obviamente, tais seres ficavam insatisfeitos com seus comentários impróprios, porém Vincent pouco se importava. A noite foi caindo, e o piano, oscilando entre canções de alegria e de lamento. A solidão jamais poderia ser tão sublime.
 

5 comentários:

Vitor Tassinari Dornelles disse...

Ei... baita texto. Chega a ser falta de consideração ler e não comentar.
Gostei da reflexão da loja. E a parte dos dons eu concordo plenamente. Mas também não acho que seja preguiça a palavra certa para as pessoas que insistem em falar em dom. Seria uma falta de afinidade.
É fácil dizer o que gostaríamos de fazer. Difícil é sentir-se suficientemente animado a realizar tal atividade.

Lu disse...

Muito bom!

Expectatore disse...

Parabéns pelo texto - boas metáforas para a hipocrisia e o misticismo barato! E também, pela parte relacionada ao esforço do aprendizado [o exemplo é na música, mas se aplica em vários âmbitos pessoais] - nada mais verdadeiro...

Até mais.

Bazófias e Discrepâncias de um certo diverso disse...

Bacana... seria uma reprodução da ausência de sociabilidade em decorrência da intencionalidade do outro indivíduo no prazer barato de trucidar o outro, enquanto ser consciente... o negócio, então, é pegar o mínimo de esclarecimento que se tem e se jogar num beco ou num quarto, e por ali ficar.

Ana ® disse...

Nossa, que palavras fortes... sem hipocrisia...rs!