domingo, 28 de junho de 2009

Identidade de indivíduos sem rostos


“Um organismo vivo dispõe da capacidade de se adaptar rapidamente, habituar-se e acomodar-se a qualquer atmosfera, senão o homem deveria sentir a cada momento que fundo irracional têm às vezes as suas atividades racionais e quão pouca verdade há em atividades tão sensatas e terríveis pelos seus resultados”
Tchekhov 


Como presidiários, será que não somos nada além de números? Entes sem rostos e sem nenhum pensamento próprio? Em resumo, indivíduos sem identidade individual. Pode parecer atemorizante tal perspectiva a quem julga essencial haver um quê de beleza e conveniência na verdade, como disse Tchekhov: “O remédio deve ser doce; a verdade, bela... E essa fantasmagoria o homem assumiu desde os tempos de Adão... De resto... Quem sabe tudo isso é natural e deve ser assim mesmo... Não são poucas na natureza as fraudes e as ilusões úteis...”.

Decerto, nos acostumamos a uma série de coisas infundadas, pois quem não vê com espanto o fato de um indivíduo já nascer fadado à miséria caso seja pertencente a uma das castas mais baixas na Índia, ou qual ser humano americano ou europeu, por exemplo, não é tomado de imensa aversão à forma como as mulheres afegãs são tratadas. Tudo isso, dizem, são questões culturais; porém, estas têm por função comutar a identidade individual por uma identidade coletiva. E se alguém resolve se distanciar de tais convenções é visto como insano e tentam isolá-lo ou até mesmo exterminá-lo. Pense em uma mulher afegã que resolvesse se revoltar contra todos aqueles costumes que lhe soam descabidos, ela não teria força alguma para lutar sozinha e seria vista como doida, quando, na verdade, seria a única correta. Porém, como ironizou Bertrand Russell, a loucura individual é vista como um disparate, enquanto a loucura coletiva é aceitável e não deve ser questionada.

Portanto para que haja mudanças, não se devem utilizar formas que visam gerar o caos unicamente, pois ocorreria o mesmo dito acima, tomemos outro exemplo, se no ápice da escravidão, um servo julgasse aquilo tudo infundado e resolvesse ir embora e levar todos que quisessem ir em sua companhia, este sofreria consequências atrozes por parte de seu senhor em decorrência de tal atitude não condizente com a mentalidade da época, poderia até sofrer humilhações como as argolas no pescoço de fugitivos das minas de carvão. Destarte, devemos procurar mudar a mentalidade dos demais ante tais absurdos, porquanto foi dessa forma que houve mudanças em relação à escravatura. Contudo, é correto afirmar que em determinadas culturas haverá punições mais árduas, enquanto em outras, estas serão mais brandas.

Dando continuidade, é relevante citar novamente Russell, pois este ironizou dizendo que parece que o pecado é geográfico. Tal sentença é incontestável, rimos uns da cultura dos outros, enquanto todas são um disparate, pois não pensamos em suas validades, apenas agimos cegamente de acordo com nossas identidades coletivas. Tomemos como exemplo Mersault, o protagonista de O estrangeiro, grande obra de Camus, que foi julgado como culpado pela sociedade pelo fato de ser diferente da grande maioria, por não trivializar seus sentimentos, não dizer que amava quando não o fazia realmente, e por não chorar com a morte de sua mãe, como é lei em nossa sociedade, houve o fato de assassinar um árabe, mas este ficou em segunda instância, sem a mesma relevância do crime anterior. 

Concluindo, o indivíduo só poderá pensar e agir por si mesmo quando conseguir se livrar de uma infinidade de amarras que lhe puseram desde o seu nascimento, ademais, deve-se notar o enorme abismo existente entre as convicções das pessoas e um modo de agir concernente às mesmas em diversos contextos sociais, pois tais atitudes relativas à identidade individual vão de encontro à identidade coletiva vigente em nossa sociedade. Porém, não se deve procurar agir em conformidade com os ideais alheios, simplesmente por esses estarem em alta na contemporaneidade, porque como disse Russell: “Não tenhas inveja daqueles que vivem num paraíso dos tolos, pois apenas um tolo o consideraria um paraíso.” 

À espera de mudanças vagarosas

"Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é, portanto, inevitável. Mas não devemos reconhecer isso. Quem não pode deixar de ter escravos, não fará melhor chamando-os de homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para não desesperá-los. Esta compensação certamente lhes é devida, não acha? Desse modo, eles continuarão a sorrir e nós ficaremos com a consciência tranqüila"
Albert Camus – A Queda


Chegaram ao local da reunião de Friedrich, seu motorista, Joseph, abriu-lhe a porta e recebeu a ordem de aguardar no veículo, até o término dos afazeres de seu patrão. Anuiu, e sentou-se a fim de esperar. Achava um tanto infundada tal situação, pois por que deveria ele esperar cerca de quatro horas no mesmo lugar? Por que não faziam o contrário: ele teria liberdade de ir aonde quisesse, e quando a reunião terminasse, Friedrich poderia ligar-lhe, e Joseph viria buscá-lo, fazendo com que seu patrão não esperasse mais do que alguns minutos? Todavia, eles não são iguais, porquanto para um é inadmissível ter de aguardar quinze minutos, em contrapartida, o outro é impossibilitado de se mostrar insatisfeito com uma espera de quatro horas, porque com essa atitude correria o risco de perder seu emprego.

Entretanto, Friedrich deixava alguns livros no veículo e lhe dizia que podia lê-los para passar o tempo, porém jamais deve ter passado por sua cabeça a possibilidade de Joseph não sentir satisfação com a leitura ou não compartilhar dos mesmos gostos literários de seu senhor. Decerto nunca teve tais pensamentos, visto que lhe era mais cômodo deixar os livros e julgar-se a pessoa mais bondosa possível, pois proporcionava uma cura para o tédio de seu subordinado. Contudo, Joseph não tinha do que reclamar, diziam-lhe, pois havia muitos indivíduos em condições piores do que a sua, outrossim, era comum os motoristas esperarem seus patrões por horas a fio, sendo assim ninguém jamais os repreendia por suscitarem tais esperas, logo sentiam-se indiferentes com tal agonia provocada em seus empregados, é como uma antiga crença de que os escravos não necessitavam de descanso aos domingos, pois o desconheciam. Joseph lembrou-se do que lera em um de seus romances, não os enfadonhos deixados por seu chefe, mas um de seu agrado, este trecho que dançava em sua memória: "O mal consentido faz parte da bondade"*. 

A seguir, uma infinidade de pensamentos o acometeu, trabalhava cerca de dez horas por dia, muitas vezes nos finais de semana, recebendo em troca uma exígua remuneração com a qual pagava o aluguel de sua residência, comprava alimentos para sua família e, quando o dinheiro lhe permitia, adquiria um novo clássica literário para se deleitar nas incessantes horas de espera. 

O tempo andou a passos vagarosos, porém finalmente Friedrich retornou radiante de sua reunião, pelo visto as coisas correram bem. Joseph lhe dirigiu um sorriso, pois sabia que seu patrão não tolerava expressões de infelicidade ou insatisfação nos semblantes de seus funcionários. 

*Victor Hugo - Os miseráveis

sábado, 27 de junho de 2009

Citações no cadafalso


Hoje, fui entregar um trabalho de literatura na faculdade, no qual havia uma citação de Victor Hugo condizente com o tema do escrito; todavia, foi-me exigida a referência bibliográfica do livro, o ano de publicação da edição, a página do trecho escolhido, etc. Em suma, se não possuísse tal obra em minha residência, ser-me-ia impossível fazer a citação devido aos empecilhos oriundos das benditas referências bibliográficas.

Agora me pergunto: e quanto àqueles alunos que não dispõem em seus lares dos livros que leram? Para essa maioria, então, tornou-se inexequível fazer uma mera citação em um trabalho de universidade, porquanto ninguém guardará para si próprio mais do que o trecho o qual tanto lhe agradou, a obra da qual o mesmo fora retirado e a devida página na qual se encontrava. Anotar o ano de publicação da obra e a sua referência bibliográfica está fora de cogitação, tanto porque o leitor não aponta tal trecho com a segunda intenção de futuramente citá-lo em um trabalho universitário, mas sim pois esse o agradou enormemente.

Concluindo, a grande ironia reside no fato de o trecho em questão ser de autoria de Victor Hugo, um verdadeiro pai dos oprimidos; entretanto, só quem dispõe de condições financeiras para possuir obras literárias é que estará apto a citar o grande poeta.

domingo, 14 de junho de 2009

Possibilidades


Anthon dirigia celeremente para seu trabalho, o atraso tinha como resultado intensificar seu mau humor costumeiro àquela hora da manhã. Parou no sinal vermelho, atrás de uma motocicleta, instantes se passaram e nada mudou, exceto a cor do sinal, uma mudança singela, contudo importante para Anthon, pois indicava a possibilidade de continuar se dirigindo a seu emprego, porém não foi exatamente o que aconteceu, visto que o motorista do veículo situado à frente do seu não se locomoveu, Anthon não tardou a buzinar; todavia, havia algum problema na motocicleta que a estava impossibilitando de seguir em frente.

Nosso herói, ao menos assim era intitulado segundo ele próprio, tomado de uma furia ante a ausência de movimentação por parte do indivíduo que obstruía seu caminho, desceu de seu veículo e, ao notar sua vantagem em altura e compleição ante o adversário, pôs-se a ofendê-lo mediante uma série de impropérios, o rapaz mandou que Anthon se calasse, visto que estava tendo dificuldades em consertar seu meio de transporte; Anthon, porém, retorquiu que pouco lhe importavam os problemas alheios, ordenando que o outro saísse imediatamente de seu caminho.

Dois homens desceram de um veículo localizado atrás do luxuoso carro de Anthon, e avisaram que se o motoqueiro fosse tocado, eles não deixariam aquela agressão infundada ocorrer impunimente. Anthon redarguiu que pouco lhe importava o que os dois rapazes julgavam certo e lhes informou seu intento de tirar a pancadas o jovem motoqueiro de sua frente. Destarte, os três indivíduos se uniram na frente de Anthon. Este por sua vez, refletiu pela primeira vez naquele dia, analisou se seria sábio enfrentar aqueles três homens; contudo, uma multidão já havia se posicionado a fim de assistir ao espetáculo, e nosso herói não almejava agir feito um covarde, ao menos em público. Em sua cabeça, seria preferível enfrentar os três, porque embora levasse a pior, ficaria visto como corajoso, logo não teria como levar a pior, ademais, seus rivais seriam julgados como os verdadeiros covardes, pois estariam em uma grande vantagem numérica.

Por um instante, ocorreu-lhe a ideia de ser indiferente ao julgamento de todos aqueles circunstantes, e simplesmente voltar a seu carro e esperar que o motoqueiro solucionasse o problema de sua moto, porém ao atentar que o número de espectadores crescera, sem parar para pensar, desferiu um soco na fronte do jovem rapaz, tudo o que se sucedeu passou tão rápido que Anthon nada pôde ver, apenas sentiu fortes batidas e a dor recrudescer a cada segundo, até que fosse dado o veredicto de que já apanhara em demasia.