sábado, 16 de janeiro de 2010

Pretexto e protesto


O cenário era uma minúscula vila, cingida por árvores, rios e pequenos animais, estes dispunham de olhares bastante atônitos, dirigidos às pessoas ali presentes, não a elas propriamente, mas sim a seus atos. Um mantinha belas aves encarceradas em gaiolas, obrigando-as a cantarem a fim de o entreter; outros caçavam meramente por prazer, visando não mais divisar o tédio, ao menos durante alguns instantes. A fauna sendo privada da vida para abster seres mesquinhos de momentos enfadonhos. O fastio lhes soa medonho, somente ele, infelizmente. 

Os indivíduos habitantes do ínfimo local zangavam-se se não houvesse uniformidade entre eles, portanto logo ensinavam aos pequenos as formas corretas de pensar. Podia-se ver um homem de cerca de cinquenta anos instruindo um rapaz de tenra idade acerca de alguma baboseira, quiçá privando-lhe de sua ternura, porquanto viam-na como um atroz defeito.

De súbito, antes de uma completa descrição, principiou um intenso incêndio na vila e em suas cercanias, animais foram instantaneamente incinerados, puderam-se ver seres humanos serem devorados por chamas vorazes. Entretanto, havia um fato ainda mais esquisito: nenhum deles fazia sequer um exíguo movimento tencionando fugir do fogo, mantinham-se com as mesmas expressões ostentadas enquanto tudo lhes parecia correr bem. Até mesmo os animais permaneciam imóveis, talvez estivessem habituados ao martírio. 

- Tudo acabado!

Lamentou o desolado pintor, cujo último quadro acabara de ser incinerado pelos cidadãos em fúria, ante a forma como foram retratados pelo artista. Indagaram-lhe se preferia ser queimado também a cessar suas produções nefastas. Não almejavam arte onde viviam, porque a única função desta, afiançavam, era corromper os mais novos e desviá-los do realmente necessário. 

O pintor lamentou-se diante de todos os seus retratos retalhados, após, viu seus pincéis e tintas serem entregues à incandescência. O sentido de sua vida também havia sido reduzido a cinzas. Nunca mais produziria nada, estava escrito nos olhares furiosos de seus vizinhos. Destarte, concluiu amargamente: "na ausência de traços, entrega-se a arte e a si mesmo às traças".


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