domingo, 28 de junho de 2009

À espera de mudanças vagarosas

"Cá entre nós, a servidão, de preferência sorridente, é, portanto, inevitável. Mas não devemos reconhecer isso. Quem não pode deixar de ter escravos, não fará melhor chamando-os de homens livres? Por princípio, em primeiro lugar, e depois para não desesperá-los. Esta compensação certamente lhes é devida, não acha? Desse modo, eles continuarão a sorrir e nós ficaremos com a consciência tranqüila"
Albert Camus – A Queda


Chegaram ao local da reunião de Friedrich, seu motorista, Joseph, abriu-lhe a porta e recebeu a ordem de aguardar no veículo, até o término dos afazeres de seu patrão. Anuiu, e sentou-se a fim de esperar. Achava um tanto infundada tal situação, pois por que deveria ele esperar cerca de quatro horas no mesmo lugar? Por que não faziam o contrário: ele teria liberdade de ir aonde quisesse, e quando a reunião terminasse, Friedrich poderia ligar-lhe, e Joseph viria buscá-lo, fazendo com que seu patrão não esperasse mais do que alguns minutos? Todavia, eles não são iguais, porquanto para um é inadmissível ter de aguardar quinze minutos, em contrapartida, o outro é impossibilitado de se mostrar insatisfeito com uma espera de quatro horas, porque com essa atitude correria o risco de perder seu emprego.

Entretanto, Friedrich deixava alguns livros no veículo e lhe dizia que podia lê-los para passar o tempo, porém jamais deve ter passado por sua cabeça a possibilidade de Joseph não sentir satisfação com a leitura ou não compartilhar dos mesmos gostos literários de seu senhor. Decerto nunca teve tais pensamentos, visto que lhe era mais cômodo deixar os livros e julgar-se a pessoa mais bondosa possível, pois proporcionava uma cura para o tédio de seu subordinado. Contudo, Joseph não tinha do que reclamar, diziam-lhe, pois havia muitos indivíduos em condições piores do que a sua, outrossim, era comum os motoristas esperarem seus patrões por horas a fio, sendo assim ninguém jamais os repreendia por suscitarem tais esperas, logo sentiam-se indiferentes com tal agonia provocada em seus empregados, é como uma antiga crença de que os escravos não necessitavam de descanso aos domingos, pois o desconheciam. Joseph lembrou-se do que lera em um de seus romances, não os enfadonhos deixados por seu chefe, mas um de seu agrado, este trecho que dançava em sua memória: "O mal consentido faz parte da bondade"*. 

A seguir, uma infinidade de pensamentos o acometeu, trabalhava cerca de dez horas por dia, muitas vezes nos finais de semana, recebendo em troca uma exígua remuneração com a qual pagava o aluguel de sua residência, comprava alimentos para sua família e, quando o dinheiro lhe permitia, adquiria um novo clássica literário para se deleitar nas incessantes horas de espera. 

O tempo andou a passos vagarosos, porém finalmente Friedrich retornou radiante de sua reunião, pelo visto as coisas correram bem. Joseph lhe dirigiu um sorriso, pois sabia que seu patrão não tolerava expressões de infelicidade ou insatisfação nos semblantes de seus funcionários. 

*Victor Hugo - Os miseráveis

Um comentário:

Bazófias e Discrepâncias de um certo diverso disse...

Retratou bem uma situação e personagens... vc manda mto bem nos textos!