quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Desbancando a perfídia


O destino era o banco, o acaso deu-se lá mesmo. Tudo bem, mas não de forma tão sucinta, pois onde há brevidade em demasia, também há incontáveis incompreensões. Mais uma vez, agora, de mãos dadas com o vagar, deixemos que os pressurosos corram na frente, desatentos às maravilhas do percurso:

O calor despontou com a chegada do verão, a ponto de arrefecer o prazer de uma caminhada pelas ruas; contudo, há sempre exceções. Hoje, o sol acarinhava ao invés de agredir. O rapaz estava em casa, convivendo com tardes imensas, destarte decidiu-se por comprar um livro, a fim de entreter e instruir a si mesmo. Já tinha em mente a obra almejada, bastando apenas ir à única livraria da cidade, ver se o título em questão encontrava-se disponível. Todavia, não dispunha de dinheiro em seu lar, portanto era necessário passar primeiro no banco e, só depois, dirigir-se à livraria.

Nada houve de interessante no trajeto, então, podemos omiti-lo. O banco encontrava-se pouco movimentado, apenas uma dúzia de pessoas por ali. O rapaz logo encontrou uma máquina disponível, sacando, na mesma, a quantia almejada para arcar com suas despesas literárias. Contudo, a despeito de sua barba já um tanto crescida e de seus cabelos desgrenhados, uma senhora lhe pediu ajuda, esta que, devido a seus ínfimos conhecimentos naquele ofício, soou-lhe inexequível, sendo incapaz de atendê-la. Num átimo, sucedeu um novo pedido de auxílio: um senhor, alegando não ter a mais exígua habilidade com aquelas máquinas modernas, indagou-lhe se não veria o saldo bancário para ele. O rapaz anuiu ao pedido, afinal, nada lhe custava. Pegou o cartão do velho homem e o pôs na máquina. Havia uma boa quantia depositada, cerca de dois mil reais. Perguntou ao rapaz se não retiraria para ele mil reais. O rapaz consentiu novamente, retirando o dinheiro e o entregando juntamente com o cartão ao amigável e agradecido senhor. 

Saiu do recinto e dirigiu-se à livraria. Chegando lá, divisou a obra almejada: Os trabalhadores do mar, de Victor Hugo. Pagou pela mesma e rumou para a sua residência. No caminho de volta, veio-lhe à mente a ideia do tamanho absurdo por parte do homem dentro do banco, este que se constituía em confiar em um estranho, deixá-lo manejar seu cartão, mostrando-lhe sua senha bancária a fim de efetuar com êxito as operações por ele solicitadas. Essa ideia o jovem rapaz recebeu desde cedo - que não devia confiar em estranhos -, porém, hoje, pôde julgá-la um enorme despautério, não a ideia em si, mas o fato de não podermos confiar na honestidade de nossos próprios semelhantes, sermos incapazes de pedir o mínimo auxílio em um ambiente onde a perfídia e a ambição imperam. Reitero: felizmente, existem exceções! O rapaz bradou em pensamento: "não preciso de um céu para ser bom". Pode se julgar um ato de vaidade tal pensamento, talvez apenas de indignação; todavia, creio que pouco lhe importe o julgamento que farão ou se abster-se-ão de fazê-lo.

Pôde extirpar de si um pensamento mesquinho - de que ninguém deve confiar em ninguém, pois todos são trapaceiros-. Entretanto, é notório que preconceitos e superstições oriundas desde o nosso berço têm maior dificuldade em pegar no sono, algumas jamais adormecem, mantêm seus olhos bem abertos a fim de vigorar a todo instante. Felizmente, há exceções.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Adormecer


O quarto era sombrio, assim como o dia lá fora, porém, mesmo que o sol imperasse perenemente, o quarto manteria seu caráter lúgubre. Havia algumas poucas pessoas sentadas ao redor de uma cama um tanto simples, na qual jazia um senhor bastante enfermo. A fala estava muito bem aprisionada nas poucas bocas ali presentes, pois assim o doente desejara, após julgar condenáveis os absurdos há pouco proferidos. Quiseram os circunstantes despreocupá-lo acerca dos receios iminentes em tal ponto da vida no qual se encontrava. Para tal fim, falaram por certos instantes acerca de suas crenças na vida após a morte, ressurreição, eternidade da alma, entre outros assuntos reconfortantes. O velho mandou que se calassem, pois não precisava de conforto, sobretudo oriundo de formas espúrias de alívio. Chamou a todos de tolos, por acreditarem em tamanhas baboseiras, indagando-os se possuíam evidencias para professar tamanhas falsidades. Teve um excesso de tosse após esse breve momento de agitação. Logo que se restabeleceu, continuou falando, agora em tom mais brando. Comparou as crenças dos indivíduos ali situados e o modo como se portavam com base nas mesmas a colegiais indolentes que julgam poder protelar seus afazeres perenemente. Contudo, de maneira mais plácida, afiançou que, diferentemente de uma escola, a vida não permite novas oportunidades, não é uma questão de ser reprovado e poder obter êxito no ano subsequente, há apenas uma vida e o único pecado é não vivê-la de forma satisfatória. Como disse, o existir por si só não tem o mínimo sentido, portanto é necessário que lhe atribuamos um.

O pessimismo em suas palavras foi decretado unanimemente por todos no quarto. O enfermo pensou, abstendo-se de participar tal ideia aos demais: "é notória a falibilidade dos sentidos, porém como um mesmo argumento bem elucidado pode parecer otimista para alguns e derrotista a outros?". Prosseguiu: "A estética deveras atrapalha o julgamento humano dos fatos, pois é muito mais belo crer em novas e incessantes oportunidades do que responsabilizar o homem por seus próprios atos".

Foi decretado horário de visita, e aos sons inteligíveis foi permitido sair de seus cárceres. As pessoas começaram a falar entre si sobre fatos concernentes ao cotidiano. O velho ouvia à medida do possível, porquanto sua audição estava bem aquém do que já fora. Aquelas conversas simples o interessavam significativamente, muito além de metafísicas vãs. Sentiu uma imensa saudade dos tempos áureos de antanho, nos quais sua saúde o possibilitava de ir ter momentos aprazíveis com seus confrades de colóquio, maneira como se referia a seus amigos, em belas manhãs ensolaradas. Adorava também conversar com crianças, porque estas sempre o surpreendiam com suas perguntas inesperadas.

Deste modo, fica difícil julgar a mesma pessoa se equipararmos o velho ranzinza na cama deitado, com o amigável senhor de outrora. Entretanto, podemos atribuir o mau humor à sua saúde estável, às visitas que lhe soam enfadonhas, à saudade de suas leituras ou caminhadas matutinas, ou então simplesmente estava sendo castigado por seus pensamentos subversivos. Quem poderá saber.

A noite foi se acercando pouco a pouco, porém nada mudava com a sua chegada, visto a imensa escuridão na qual se encontrava o quarto. Contudo, houve algo significativo, seus visitantes começaram  a ir embora, devido à hora avançada. Eram seus familiares a deixar o quarto, nunca houve uma genuína amizade entre eles, pois os julgava deveras entediantes e perversos, embora o conceito que tivessem de si próprios fosse outro. Por fim, a paz estava justamente esperando que saíssem para fazer companhia ao pobre senhor, ao menos essa era a forma de pensar do homem.

Ansiou para adormecer logo e para que seu sono fosse povoado por sonhos agradáveis, pois este era, ultimamente, o momento mais feliz de sua vida; porém, não se sentia nem um pouco injustiçado. 

domingo, 20 de dezembro de 2009

Fato desfiado


Era uma noite comum e cálida, o relógio movia-se celeremente, pois a diversão estava presente. Porém, a serenata dos pássaros estava prestes a principiar, sendo incômodo adormecer ao som de tal concerto, ao menos para quem esta história está a narrar. Tudo se encaminhava para um desfecho corriqueiro, até a visão de uma aranha em plena parede do quarto. Recebeu um olhar de espanto, devido a seu tamanho e a sua localização. Possivelmente o aracnídeo não teria a mesma sorte de seus congêneres que habitam outros cômodos da mesma residência, tanto que convivo em harmonia com espécies que residem em um curto corredor, o qual liga o quarto à cozinha. Contudo, estávamos perante uma exceção, eu e o artrópode em questão; entretanto, o que seria da vida se apenas houvesse regras e nenhuma exceção? Bom, neste caso, a vida da aranha ainda existiria.

Após estraçalhar o animal com duas bordoadas precisas, contudo desnecessárias, fiquei um tanto pensativo acerca do fundamento da ação há pouco perpetrada. Confesso que foi difícil encontrar um argumento suficientemente bom para a rigorosidade da razão. Assim sendo, pensei em fazer como todos, ou seja: selecionar um argumento espúrio, de preferência conveniente, e torná-lo verdadeiro. Todavia, não foi o que fiz, pois, ironicamente, naquela mesma noite, eu lera o conto "O enforcamento", de George Orwell, no qual um preso era conduzido ao cadafalso, o guarda que o encaminhava ao suplício, em dado momento, pôs-se a refletir se aquele prisioneiro não era igual a ele, se merecia aquele final atroz. No fim, o prisioneiro padeceu, engolido pela mordida impiedosa da forca. O guarda ficou pensativo por alguns instantes, porém, logo, imergiu nas gargalhadas de seus superiores, e em poucos instantes olvidou a contestabilidade de seu ofício.

Será que o mesmo não se daria com a minha pessoa? Não me esqueceria do que havia feito, ou pelo menos do significado do ato, e me entregaria a um sono plácido e aprazível, acordando, no dia seguinte, sem mais me lembrar do que houvera? Destarte, pairou um dilema sobre mim, já que não almejava o esquecimento, deveria deixar o ocorrido como uma marca indelével dentro de mim? Seria a antítese do que ocorria com os escravos fugitivos das minas de carvão, porquanto, como punição, estes recebiam uma argola no pescoço, a fim de jamais esquecerem o que fizeram. Nos tempos de antanho recém citados, a marca inapagável era exclusividade dos fugitivos, no meu caso, a mesma se daria se optasse pelo oposto, se permanecesse ao invés de correr de mim mesmo.

Inúmeras vezes, a consciência se assemelha a uma imensa teia, capaz de nos prender como um ínfimo inseto, cujo debater-se é inútil, pois jamais poderá se libertar, restando-lhe apenas aguardar o momento de ser devorado, visto que a posição de presa jamais será deposta. A resistência dos fios é de assombrar, embora se seja mais do que um inseto, deste modo conseguindo se libertar, haverá sempre alguns resquícios do antigo cárcere a nos acompanhar.

Tive três possibilidades de escolha: fugir, ficar ou aprender. Assim sendo, pensei: "de que serviria um martírio eterno; seria mais uma questão de vaidade". Conseguintemente, o mais sensato seria evitar repetir a atitude que tanto desagradou-me. O sono por fim bateu à porta, a casa estava suficientemente organizada para recebê-lo, porque acabara de ser limpa, embora ainda houvesse pequenos indícios de sujeira, como diminutas patinhas e um tanto de sangue em uma das paredes.


quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Contexto contestado


“O extraordinário é aqueles que cansam sua razão para fazer com que relacione certos acontecimentos com forças ocultas não fazem o mínimo esforço para evitar de verificar a verdadeira causa”Montesquieu

Após anos de desenvolvimento do pensar, constitui-se um desatino o ato de julgar determinada atitude desconsiderando o contexto no qual está inserida. Porém, em diversas circunstâncias, embora o cenário e as motivações sejam supostamente levados em conta, o equívoco teima em se fazer presente, quiça de forma análoga ao vício que expulsamos fervorosamente quando nossos vizinhos estão observando; o qual, porém, chamamos de volta assim que os olhos alheios perdem-nos de vista.

Um exemplo assaz relevante, cuja exposição decerto servirá para elucidar o ponto de vista deste escrito é a morte de um ou mais indivíduos indefesos causada por outrem. O assassinato é visto como atroz nos mais distintos lugares, sendo seu perpetrador punido com diferentes castigos. Em contrapartida, louros recaem sobre quem mata seus inimigos na guerra, eis uma mudança de contexto e de ponto de vista acerca da ação cometida. 

Ademais, meninas que saem à noite dotadas de um indumentária dita como indecorosa por muitos são vítimas dos mais infundados impropérios por parte de observadores; o mesmo, contudo, não ocorre com quem estiver usando um biquíni comum em uma praia. Destarte, surge sem vagar uma questão à mente: não estariam as mulheres na praia mostrando mais partes de seus corpos do que suas congêneres frequentadoras de festas? Não seriam ambos locais voltados ao lazer e à diversão? Assim sendo, o que permite certas vestimentas e um e em outro, não?

Quando a escolha feita por alguém não é passível de afetar outrem de forma danosa, qual o sentido deste intervir nas ações daquele? Soa realmente difícil para a razão responder a tal questionamento. Se tais intervenções benéficas fossem postas em prática o tempo inteiro, muitas televisões seriam desligadas enquanto seus pobres telespectadores lançavam-lhes olhares estúpidos de forma similar às baboseiras que recebem em troca, sendo este apenas um dos exemplos não efetuados amiúde. 

Concluindo, é inegável o valor do contexto na avaliação dos fatos, entretanto este vem sendo mal interpretado em incontáveis situações. Tudo isso se dá pois as pessoas têm predileção por voltar-se ao mesquinho, como na obra 1984, de George Orwell, na qual os proles utilizavam suas memórias para decorar dados concernentes aos números da lotéria, porém esqueciam seu passado completamente, porque não o julgavam tão relevante quanto a possível sorte grande. 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Destino desfeito


Seu fado o enfada;

Sua farda mofada

Representa outrem

Pois soa-lhe aquém

De seus princípios

Que dias insípidos

Buscam evitar

Para sua alma salvar


Não crendo em destino

Julgando-o um desatino

Alcança-se a liberdade

A visão com profundidade

Cansa-se da resignação

E há início a reação

Dissolvendo-se pretextos

Imergindo em belos textos


A pena pode tudo escrever

Igualmente se dá  com o viver

Menos limitações na poesia;

Mais liberdade, todavia

Versos e homens livres

Abertura a distintos alvitres

Porém o sonho se pinta

Antes que finde-se a tinta


quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Tesouro espúrio


Muitos baús podem se encontar destituídos de tesouros

Embora belamente adornados, por dentro estão vazios

Nem sequer terão cruzado o mundo em encantadores navios;

Havendo neles apenas o que são por si sós joias e ouros


Porém, em tempos deveras áridos para o intelecto

Navegar em um fabuloso, mas conturbado mar

Representa do porto intitulado felicidade se distanciar;

Teima-se em transformar um espírito jovial em provecto

Quando pelo veneno da resignação nos tornamos infectos


No final das contas, percrustar oceanos é realmente tentador

Embora a água límpida e espumante seja vista com temor

Por quem não sabe nadar e tal arte não se dispõe a praticar


Somente os peixes sem ínfimos esforços nascem e saem nadando

Quanto a nós, desde os tempos de antanho, foi preciso empenho

Pois se inexiste, indubitavelmente haverá pretextos ao desdenho

Porquanto onde a indolência governa, a si mesmo se está enterrando


Seria mais sensato realmente, destinar às profundezas da terra

Baús por belas pedras incrustados, contudo da ignorância aliados

Ao invés de arcas de aspecto não tão sublime à falibilidade da visão

Porém, cujos tesouros recônditos satisfazem a um plácido coração