domingo, 20 de dezembro de 2009

Fato desfiado


Era uma noite comum e cálida, o relógio movia-se celeremente, pois a diversão estava presente. Porém, a serenata dos pássaros estava prestes a principiar, sendo incômodo adormecer ao som de tal concerto, ao menos para quem esta história está a narrar. Tudo se encaminhava para um desfecho corriqueiro, até a visão de uma aranha em plena parede do quarto. Recebeu um olhar de espanto, devido a seu tamanho e a sua localização. Possivelmente o aracnídeo não teria a mesma sorte de seus congêneres que habitam outros cômodos da mesma residência, tanto que convivo em harmonia com espécies que residem em um curto corredor, o qual liga o quarto à cozinha. Contudo, estávamos perante uma exceção, eu e o artrópode em questão; entretanto, o que seria da vida se apenas houvesse regras e nenhuma exceção? Bom, neste caso, a vida da aranha ainda existiria.

Após estraçalhar o animal com duas bordoadas precisas, contudo desnecessárias, fiquei um tanto pensativo acerca do fundamento da ação há pouco perpetrada. Confesso que foi difícil encontrar um argumento suficientemente bom para a rigorosidade da razão. Assim sendo, pensei em fazer como todos, ou seja: selecionar um argumento espúrio, de preferência conveniente, e torná-lo verdadeiro. Todavia, não foi o que fiz, pois, ironicamente, naquela mesma noite, eu lera o conto "O enforcamento", de George Orwell, no qual um preso era conduzido ao cadafalso, o guarda que o encaminhava ao suplício, em dado momento, pôs-se a refletir se aquele prisioneiro não era igual a ele, se merecia aquele final atroz. No fim, o prisioneiro padeceu, engolido pela mordida impiedosa da forca. O guarda ficou pensativo por alguns instantes, porém, logo, imergiu nas gargalhadas de seus superiores, e em poucos instantes olvidou a contestabilidade de seu ofício.

Será que o mesmo não se daria com a minha pessoa? Não me esqueceria do que havia feito, ou pelo menos do significado do ato, e me entregaria a um sono plácido e aprazível, acordando, no dia seguinte, sem mais me lembrar do que houvera? Destarte, pairou um dilema sobre mim, já que não almejava o esquecimento, deveria deixar o ocorrido como uma marca indelével dentro de mim? Seria a antítese do que ocorria com os escravos fugitivos das minas de carvão, porquanto, como punição, estes recebiam uma argola no pescoço, a fim de jamais esquecerem o que fizeram. Nos tempos de antanho recém citados, a marca inapagável era exclusividade dos fugitivos, no meu caso, a mesma se daria se optasse pelo oposto, se permanecesse ao invés de correr de mim mesmo.

Inúmeras vezes, a consciência se assemelha a uma imensa teia, capaz de nos prender como um ínfimo inseto, cujo debater-se é inútil, pois jamais poderá se libertar, restando-lhe apenas aguardar o momento de ser devorado, visto que a posição de presa jamais será deposta. A resistência dos fios é de assombrar, embora se seja mais do que um inseto, deste modo conseguindo se libertar, haverá sempre alguns resquícios do antigo cárcere a nos acompanhar.

Tive três possibilidades de escolha: fugir, ficar ou aprender. Assim sendo, pensei: "de que serviria um martírio eterno; seria mais uma questão de vaidade". Conseguintemente, o mais sensato seria evitar repetir a atitude que tanto desagradou-me. O sono por fim bateu à porta, a casa estava suficientemente organizada para recebê-lo, porque acabara de ser limpa, embora ainda houvesse pequenos indícios de sujeira, como diminutas patinhas e um tanto de sangue em uma das paredes.


2 comentários:

Giulia Jardim Martinovic disse...

Escreves muitíssimo bem. Não me espantaria se desse à luz a um livro (ou mais), um dia*-*

Gostaria de saber onde estás, nunca mais o vi em meu profile do orkut :(

Bazófias e Discrepâncias de um certo diverso disse...

Já me peguei pensando nisso tbm, de forma mais simplista... poderia dizer que é um princípio de alguma linhagem budista, da qual tbm não me recordo! rs...
Lembro que um dos meus passatempos na casa da minha vó era ficar matando a vassouradas as formigas no quintal... até hoje eu lembro com muito pesar disso... mas enfim... tudo pela "limpeza" da residência, visto que o homo sapiens urbano odeia animais, que não sejam os de estimação.